A REAÇÃO DO OUTRO E O LIMITE DE FAZER O MEU MELHOR: sobre estarmos determinados a levar nossa luz

A sabedoria tolteca trouxe para minha vida dois princípios básicos, duas linhas guias que todos os dias estão na minha mente limpando e curando padrões de pensamento e crenças. Uma delas é não levar nada para o pessoal. Eu exercito, dia após dia, o entendimento de que a reação do outro é a reação do outro, e que ela é parte da história do outro e não da minha história. Meu exercício é entender que o outro pode me aprovar ou me reprovar não por causa do meu comportamento em si, não por causa do que sou, não por causa do que faço, mas por causa da história que o outro carregou até aquele momento de sua vida.  Uma mesma ação minha pode causar aprovação ou reprovação, nunca vou conseguir controlar como o outro se sente.

A outra sabedoria tolteca é a de fazer o meu melhor sempre. Sou paciente com meus limites, mas estou sempre a fazer meu melhor e dessa forma eu posso olhar para trás sem arrependimentos, sem peso, sem culpa. Eu fiz o meu melhor naquele momento. Fui até os limites do que pude.

E na última semana o curso de mergulho me trouxe lições muito valiosas e lindas, de encher os olhos d’agua, de vivência plena desses dois ensinamentos tolteca.

O dia amanheceu chuvoso. Não é o melhor clima para um curso de mergulho. Começamos com uma turma de 7 pessoas. Nosso primeiro encontro foi em sala de aula, tivemos duas horas de teoria e depois seguimos para a piscina, onde o objetivo era exercitar o que depois faríamos no mar.

Na piscina, uma das alunas desistiu do curso. Devo dizer que estava realmente difícil fazer os exercícios lá. Tira a máscara, coloca a máscara, tira o respirador, treina situações de perigo. E no momento em que a primeira aluna desistiu, começamos todos a revelar o quanto estávamos com dificuldade, o quanto era difícil fazer as habilidades.

Frio, medo, respiração ansiosa.

“Imagina no mar”… era o que todos nós pensávamos.

Um dos alunos, eu via de longe, fazia os exercícios tremendo. Ele estava super nervoso.

Estávamos todos, mas ele estava mais que todos. Parei até de olhar pare ele que estava me fazendo sentir mais tensa.

Durante a tarde, logo depois de um almoço em tempo curto, seguimos para o barco que nos levaria a um ponto de mergulho no mar. Ansiedade em dobro.

Alguns estavam a mergulhar pela primeira vez. Eu estava um pouco mais tranquila porque no dia anterior tinha entrado pela primeira vez no mar com o instrutor português. E mesmo com todas as minhas dificuldades e medos, foi divina a experiência.

A diferença é que naquela tarde, graças ao pós chuva, a água estava totalmente revirada e a visibilidade era muito baixa. Eu conseguia ver o instrutor bem perto de mim, mas a sensação era de claustrofobia. Se estávamos nervosos por causa dos exercícios que teríamos que fazer como lição do curso, a visibilidade baixa nos deixava ainda mais ansiosos. E assim, logo na primeira entrada do mar, uma outra aluna desistiu do curso.

O instrutor português fez questão de chamá-la ao mar de novo, fez questão de insistir que ela voltasse, fez questão de refazer, individualmente, alguns exercícios com ela. Mas o clima estava muito ruim, todos com muito medo, e ela realmente escolheu abandonar o curso naquele momento.

Entramos eu e o noivo dela ao mar em seguinda. E em meio a um dos exercícios ele voltou a superfície de uma só vez. O instrutor não podia deixar aquela manobra perigosa dele passar despercebida, segurou numa de suas pernas orientando que era para subir mais devagar e quando estava na superfície, falou com dureza:

“Você JAMAIS pode ter feito isso. Nunca faça isso. Você não pode subir assim tão rápido, você coloca sua vida em risco dessa forma”.

A bronca fez o aluno desistir do curso. Fechou a cara e voltou ao barco.

Nessa hora o instrutor ficou muito chateado. Ficou arrasado.

Nem completou as atividades comigo, pediu que eu voltasse ao barco.

Eu vi o quanto aquele homem estava com muito medo pela manhã. Eu vi o quanto ele tremia na piscina. Eu vi que ele estava ali só por causa da noiva. E quando almoçamos juntos ele comentou que para ele era muito mais difícil que para ela e que estava ali por causa dela.

Era parte da história que levou o casal ao curso. E o instrutor não sabia disso. Estava se sentindo bastante responsável pelo fato de os alunos terem cancelado o curso.

Três alunos desistiram do curso à tarde. E à noite um outro aluno desistiu também.

Ou seja, da turma de 7, viramos uma turma de 3.

Naquela noite, no alojamento, vi o instrutor passar pouco antes de ir dormir.

“Você ficou chateado com o que aconteceu?”

“É, fiquei, eu só espero que eles voltem para o curso um dia”.

“Mas você sabe que cada um chega aqui com uma história, né? Cada um com suas dificuldades e que não dá para você se responsabilizar pelas reações, pelas emoções, pelas dificuldades deles.”, falei me lembrando da sabedoria tolteca.

“Sim, eu sei, mas fico muito chateado, preciso explicar isso ao meu subconsciente”, ele riu com olhar de quem sabe mas que mesmo assim se responsabiliza.

E assim o dia terminou.

No dia seguinte tínhamos três novos alunos na turma. Um pai, uma mãe e um garoto com seus 11 anos. Os pais eram mergulhadores e o filho estava fazendo seu curso de mergulho. Ele já tinha iniciado o curso há algumas semanas mas teve que voltar para casa sem concluir porque sentiu muito frio na água e não conseguiu finalizar os exercícios.

O caso dele era como o caso dos outros alunos do dia anterior. Voltou para casa sem concluir por causa de todas as dificuldades que teve quando veio pela primeira vez, três semanas atrás, e agora estava em busca de encerrar o curso. E quando voltamos pela segunda vez para encerrar algo que iniciamos, você bem sabe, nossa vontade de concluir aquela meta fica maior e a expectativa cresce.

Era visível o quanto aquele garoto estava há semanas se preparando estudando a teoria. Era visível o quanto queria ir bem nos exercícios do mar. E era visível o quanto seus pais exerciam certa pressão sobre ele, principalmente o pai.

Pela manhã ficamos em sala de aula e o instrutor português, muito observativo, deu todo o suporte a todos nós, mas principalmente deu muita atenção àquele menino.

Era hora de ir ao mar. E o dia que começou nublado estava agora iluminado pelo sol. A água do mar estava límpida e a visibilidade era muito boa, muitas e muitas vezes melhor que no dia anterior. Eu e as meninas que seguimos no curso estávamos muito felizes com o sol que chegou, estávamos muito mais leves e sem todo aquele medo do dia anterior.

Para o menino a pressão era diferente, porque ele estava há três semanas sem entrar no mar. Colocou todo o equipamento que trouxe, muitas e muitas camadas de roupa para proteger do frio. Entraram na água pai, mãe e filho.

O pai era duro em muitas situações. Falava duro com o menino sobre seus equipamentos, sobre fazer direito, sobre prestar atenção, sobre agilizar, sobre cuidar do que era dele. Quando entraram no mar para o primeiro mergulho de exercícios, o clima ainda era bom. Mas logo o menino voltou sozinho para o barco, ombros caídos. Não conseguiu fazer nenhum dos exercícios.

Subiram pai, mãe depois de alguns minutos e por ali estavam a conversar entre eles. Algumas caras ruins, algumas argumentações e o menino com os mesmos ombros caídos.

Hora de preparar para o segundo mergulho.

“Anda logo, você não presta atenção no que tem que fazer, já era para estar pronto”.

O pai dizia a ele um tanto bravo.

A mãe não dizia quase nada, estava totalmente nervosa. Vez ou outra apressava o menino também.

Nessa hora a sensibilidade do instrutor português fez toda a diferença.

Ele percebeu o quanto o pai fazia pressão sobre o menino e iniciou um movimento para separar os pais do garoto. Avisou ao outro instrutor que ele entraria na água para fazer a série de exercícios com o menino. O outro instrutor, que já estava desequipado, ficou um tanto contrariado, argumentou que uma vez que o menino não tinha conseguido fazer nada no primeiro mergulho, era impossível terminar o curso naquele dia, teria que voltar outra vez.

Fiquei naquela hora imaginando aquele menino voltando pela terceira vez para concluir o curso. Fiquei imaginando o quanto se pressionaria, o quanto sentiria por mais semanas a pressão do pai, o quanto sua expectativa cresceria.

O instrutor português foi até o pai, que ainda reclamava algumas coisas, e fez com que ele se levantasse e entrasse no mar antes da mãe e do menino. Fez o mesmo com a mãe. E assim o garoto terminou de se aprontar com tranquilidade.

Entraram os quatro no mar. E enquanto isso, no barco, o outro instrutor não estava se equipando.

Foi o clímax para mim: do mar, o instrutor português gritou o outro instrutor.

“Venha, estamos esperando você para iniciarmos”.

Vi que o outro instrutor respirou fundo para superar o incômodo e contrariedade.

Mas foi a melhor forma que o instrutor português encontrou para separar pai e filho, mãe e filho.

Quando o outro instrutor entrou na água para fazer os exercício só com o menino, foi totalmente diferente. Ele conseguiu, com muita calma, fazer todos os exercícios, vencer cada etapa, superar cada uma das dificuldades.

Pai e mãe já estava no barco quando o garoto terminou a sequência no mar. Chegou ao barco triunfante, leve, outro semblante. Pai e mãe vibravam, o menino vibrava. A família começou até a conversar mais, a mãe, que sequer falava com a gente, começou a contar suas outras histórias de mergulho, sobre sua roupa, sobre amenindades do mar. Relaxados, felizes.

O barco seguiu de volta ao porto e aquele desfecho me deixou muito emocionada.

O instrutor português foi no limite da sabedoria tolteca “faça o seu melhor”, ele foi no limite do seu melhor. E eu me emocionei muito.

Ele não se deixou paralisar diante da contrariedade de outro instrutor de não querer entrar no mar. Ele não se deixou paralisar pela história que trouxe aquela família ali. Ele não se deixou paralisar pelo fato de parecer estar perdida a vinda do menino. Ele foi até o limite da sua função, ele foi até o limite da parte que lhe cabia.

E eu fiquei olhando aquela história toda muito emocionada. Fiquei olhando aquele instrutor ainda no mar com o semblante totalmente diferente do dia anterior. Fiquei olhando aquele menino sem o peso nas costas. Fiquei olhando a história diferente que agora esperava o menino quando ele voltasse para casa.

Um desfecho lindo que só foi possível porque aquele homem, com toda a sua sensibilidade, viveu até o seu limite o princípio do “faça o seu melhor”. Ele se iluminou vivendo o seu melhor. Ele iluminou outras vidas vivendo o seu melhor.

Chorei olhando aquela cena, percebendo o quanto somos instrumentos na vida uns dos outros e o quanto “fazer o nosso melhor até o limite da nossa função” pode ser tão significativo e lindo para a vida do outro, trazer tantas mudanças positivas e transformar as histórias. Além de todo o encanto que o próprio curso de mergulho trouxe para meus dias, meu coração seguiu muito abastecido com a beleza de toda essa sabedoria vivida ali. E assim seguimos, entendendo que história do outro é a história do outro, que não é para levarmos a reação do outro para o pessoal, mas que lado a lado a essa sabedoria, caminha também a percepção de que fazer o nosso melhor pode trazer muita luz, pode trazer muita transformação e determinar um resultado totalmente diferente para as outras vidas.

Paula Quintão

15 de novembro de 2015

 

………………

OBS. Ao todo, são quatro os compromissos da filosofia tolteca trabalhados por Don Miguel Ruiz em seu livro “Os quatro compromissos”. 

  1. Seja impecável com a palavra
  2. Não leve nada para o lado pessoal
  3. Não tire conclusões
  4. Dê sempre o melhor

Vale a leitura. Grande abraço, Paula Quintão. 

 

assine_newsletterb

 

banner_novoeu

8 Comments

  1. Letícia Tórgo

    Me lembrei de minha primeira aula de mergulho, do medo de desalagar a máscara e dos olhos do meu marido que não conseguia relaxar por ver minha aflição. Senti falta de ar ao ler seu texto e… ao final, assim como terminou meu mergulho, senti uma leveza incrível e muita emoção chegando à última linha do seu texto. Parabéns pela escolha de suas palavras e pela reflexão. Adorei!

  2. Beatriz Klock

    A partir do momento que entendemos que nada do que é do outro é uma carga que precisamos carregar, a nossa vida segue com toda a fluidez e do jeito que deve ser. Que experiência interessante, que lição de vida deu o seu instrutor, sendo e fazendo o melhor que pode, tendo paciência e sensibilidade, entendendo o quanto o menino estava carregando um peso que não era dele nas costas. Quem dera todas as pessoas no mundo fossem capacitadas a ter esse olhar, de entender o que se passa com as emoções de cada pessoa e saber lidar com isso. Adorei!

  3. Rico Oliveira

    Pela segunda vez, leio esta história e me emociono como da primeira. É mais uma linda partilha que toca os corações, instrui, clareia e abre nossa mente. Grato, querida Paula Quintão.!!!!

Deixe um comentário