A AMOREIRA DO MEU AVÔ sobre viver os ciclos por inteiro

Dedico à Clara, minha filha, hoje completando seus 18 anos, uma vida de sabedorias para viver seus ciclos por inteiro.

Ontem comprei uma dessas caixinhas de amora que vende na feira. Estava tão linda, amoras grandes e bem escuras. 

No mesmo instante em que a vi lembrei do meu avó Antônio. Na casa deles, durante a minha infância, convivemos com um gigante pé de amora. Era uma festa em tardes de domingo, nas épocas que o pé estava cheio da frutinha, passávamos horas ao seu redor. Primeiro alcançando as que os nossos pés nos permitiam dar altura, depois usando o bambu pra dar aquela torcidinha em galhos muito altos,  colhendo amoras. Era uma felicidade.

O chão ficava pintado de roxo nessa época e a doçura das amoras não há o que apague das minhas boas lembranças

Cheguei em casa com minha bandejinha de eira e honrei meu avô, senti saudades. Preparei a mesa, lavei uma a uma e então, quando eu provei a primeira deles… meu deus! que horror! Tão tão tão azeda. Essas só sobrevivem em suco.

E por alguns instantes fiquei conectada ao meu avô. Ele foi o homem mais inventivo a quem tive o prazer de conhecer. Um professor pardal, assim o chamávamos. Às vezes ele estava criando tijolos com uma tecnologia de unir as partes de um jeito que nem sei explicar, às vezes eram as vassouras de garrafas pet recicladas. Meu avô falava de tudo quanto era assunto, declamava poesia ao lado da minha avó, se emocionava, ria, fazia graça. 

E havia algo nele, que muito me toca, uma certa ansiedade e urgência na vivência dos ciclos. Meu avô tinha um certo apressamento interior, e isso, sinto eu, o impedia de viver os ciclos até o final, o  início-meio-e-fim de uma 4xperiência, a vida-morte-vida. E assim ele recomeçava antes que fosse tempo de ir.

Com o pé de amora foi assim: numa tarde qualquer, ele reuniu suas ferramentas e anunciou que serraria a amoreira pela base. Devia haver uma razão, talvez uma praga que comia árvore, pequena que eu era nem comentaram. Mas algo em mim, enquanto eu me lembrava da amoreira, a mais doce de todas, me trouxe o acesso a essa sabedoria do cuidado na vivência dos ciclos por completo. 

Tenho também em mim essa mesma urgência de viver que o meu avô e nesse momento curo as partes em mim que têm qualquer ansiedade em finalizar algo, pedindo luz para de fato encerrar o que pede para ser encerrado e dar seguimento aos ciclos que ainda estão em curso, vivos e trazendo aprendizados. 

Os ciclos da vida, diferente de um círculo, não possuem pontas de início e fim que se coincidem, pelo contrário, as pontas não se tocam nunca, sobem em espiral ascendente de desenvolvimento: somos hoje seres mais desenvolvidos que ontem, com a consciência mais ampliada e com mais capacidade de percebemos os ciclos em seus nascimentos e os ciclos em seus encerramentos, para só assim ser possível iniciarmos um novo período em nossas vidas. 

Nunca antes que os aprendizados se completem, nunca depois que o tempo já deu sinais que é tempo de mudar o rumo do barco.

Se nos antecipamos a encerrar um ciclo antes mesmo que ele termine, podemos ter a falsa sensação de recomeço, mas ainda estamos vivendo, mesmo que em situações diferentes, os mesmos padrões de aprendizado. É como estar na sétima série, mudar de escola, e da mesma forma nos matricularmos na sétima série em uma escola diferente.

E se um ciclo termina e continuamos ali, presos por nossos medos e apegos, por nossas inseguranças e incapacidade de criar encerramentos, uma parte dentro de nós começa também a morrer por dentro, a perder brilho e entusiasmo.  

Chegamos a adoecer quando não respeitamos os tempos dos ciclos.

Esses dias que antecedem o final do ano me levam a uma conexão muito forte com a percepção do que pede encerramento, do que pede para morrer para dar lugar à vida,  final de ano tem esse poder grande e energia marcante para todos nós. Um período para olhar os ciclos que pedem encerramento, algo em nós sente apego e não quer entregar, e igualmente, trazendo luz pela história do meu avô, olhar os ciclos que ainda estão em andamento, trazendo suas lições e aprendizados, vivências e experiências, e ter a sabedoria de não encerra-los antes da hora. 

Paula Quintão

11 de dezembro de 2016

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0 Comments

  1. William Shinji

    Paula!! Lindo texto! Essa questão dos ciclos é muito importante. Nunca refleti com muita clareza como ultimamente. E é tão belo pensar no valor de cada ciclo, sentir que aquilo que passou traz grandes aprendizados que nos fazem mais completos, mais livres no dia de hoje se deixarmos ir, deixarmos florescer aquilo que já se finalizou em outro lugar e não apodrecer em nossas mãos, e também não sair-se semi-pronto, respeitando cada tempo e cada estação.

    Muitas vezes vivo com o apressamento interior, o que me impede de viver os ciclos até o fim!

    Desapega e viva por completo William! Obrigado Paula! 🙂

  2. Rico Oliveira

    Realmente, Paula, ter o discernimento para lidar com nossos ciclos, conseguindo absorver cada transição de forma suave e tranquila é uma DÁDIVA.

    Entendê-los já é um excelente começo.

    Como de costume, você põe LUZ em suas partilhas.

    Isso nos alimenta de uma energia boa. Daí, fica muito mais fácil trilhar pelos caminhos muito mais iluminados.

    Grato, querida!!!

    Com carinho,

    Rico.

  3. Elisa Rodrigues

    Querida Paula, tão bom ler tudo isso!
    E que tod@s nós nos curemos desse apressamento, tão alabado nesses dias modernos de produtividade e números, muitas vezes vazios de alma e conteúdo.
    Que a gente aprenda a apreciar todos os ciclos – nossos e dos que nos cercam.
    Que a gente tenha a sabedoria do ajuste potencializador e a coragem da poda renovadora.
    Gratidão querida e seguimos… Até até…

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