Capítulo 32. Livro O Caminho Que As Estrelas Me Viram Cruzar
O Berro Mais Alto do Mundo
#dia 28. Pieros => Ambamestas (mais ou menos 21km)
Você já deve ter tido um sonho como esses: de repente estamos vivendo uma situação de grande perigo, um ataque, um sufoco dos maiores do mundo, e tudo o que nos resta é gritar bem alto pedindo ajuda. Só que nesse momento, o que acontece? O grito não sai. Você tenta gritar e gritar e o grito não sai. É um grito mudo, um grito preso.
Tive esse sonho muitas vezes na minha vida.
Abafei esse grito dentro de mim anos e anos.
E então, um fato se passou no Caminho. Estava cansada depois de percorrer mais de 20km, minha meta naquele dia era talvez percorrer 24km. Mas ao invés disso andei quase 22km. E tudo bem. O que são 2km dentro de 800km? Nada.
Parei num povoado bem pequeno, não tinha mercado, só um restaurante e um bar, coisa de grande valia e que resolvia a vida. Encontrei meu albergue e estava vazio: somente eu e Linda, uma senhora de seus 60 anos, americana, que caminhava sozinha também desde a França, Saint Jean, mesmo ponto onde comecei.
Logo nos entrosamos e fomos almoçar juntas. Provavelmente seríamos só nos duas no albergue e isso soava bem. Um almoço mais bonito que gostoso, mesmo assim voltamos felizes para nossos aconchegos. E a tarde se fez noite.
Teríamos duas outras companhias: um homem da Espanha chegou no entardecer e foi logo se deitando; e um outro francês que só falava francês e por isso não tinha com quem se comunicar naquele dia, ficou a mexer em seus mapas e mochila por longas e longas horas.
Tentamos até nos entender, pois ele me perguntou algo sobre um Caminho em Portugal acreditando que meu português era de lá, mas a conversa não rendeu mesmo com as mímicas e monossílabos em línguas desconhecidas que tentamos criar.
Hora de dormir. Tudo em paz. Mesmo que eles roncassem ou que as camas fossem barulhentas, ainda assim estaria tudo bem já que éramos só quatro pessoas.
Esse meu raciocínio de que menos pessoas podem proporcionar uma noite de sono melhor é totalmente sem pé nem cabeça. Há alguns dias essa teoria tinha ido por água abaixo quando naquele albergue Santa Clara eu paguei um euro a mais para ficar num quarto de três pessoas ao invés de dezenas e me dei super mal numa soma de chulé excessivo e roncos dos mais terríveis, o que provou por a + b que essa teoria não valia pra nada.
Aquele era um novo momento, uma nova noite e tudo estava bastante silencioso e bem cheiroso quando eu fui dormir.
Eis que eu durmo e desperto alguns minutos depois. Ouço o francês que não se comunicava com ninguém agora com uma respiração acelerada. Tudo escuro, eu não conseguia enxergar. “O que há com esse francês?“, atenção aos sons.
A única conclusão que aqueles sons puderem me dar é que ele estava se masturbando, um momento de descontração e alegria em sua cama de albergue. Talvez o banheiro fosse um melhor lugar, até porque estava vazio e tranquilo de ser frequentado, mas ele preferiu usar a cama mesmo. “Tudo bem“, eu me concentrei em pensar, “é um menino novo, daqui a pouco ele dorme“. Fechei meus olhos decidida a dormir e não me incomodar. Poucos minutos, abro meu olho e bem diante de mim, quase tocando no meu saco de dormir, lá estava o garoto de pé vindo em direção a minha cama.
“Aaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaahhhhhh”, eu berrei!!!
“Are you crazy? What are you doing? Você está louco? O que está fazendo?”, e resolvi xingar em inglês na esperança de ser uma língua universal minimamente compreendida por ele e pelos outros.
Foi o maior berro da minha vida. Foi o maior berro do mundo.
O garoto fez alguns acenos com a mão e saiu às pressas para o banheiro, totalmente acelerado e com medo.
Sim, eu berrei muito alto.
Não sabia que eu conseguia berrar tão alto assim.
Eu mesma fiquei a ouvir meu berro por longo tempo.
“Linda, você está acordada?”, eu perguntei e é claro que ela estava acordada. “Estou com medo desse garoto”.
“Querida, pode ficar tranquila e dormir, ele agora está com mais medo de você do que você dele”.
Pois eu fiquei em alerta toda a noite. Depois pensei que ele poderia me atacar por causa do meu maior berro do mundo. E então eu dormi.
No dia seguinte andei só por 7km, nada mais que isso. Parei numa casa rural às 10h da manhã, exausta da minha noite, chovia um tanto, e foi um alívio ter um quarto só para mim. Tomei um banho de banheira, muita espuma, e deitei sem pijama debaixo das cobertas me sentindo protegida e em paz. E um estado de leveza me invadiu. O berro me fez muito bem.
Eu berrei todos os abusos que me permiti sofrer. Eu berrei o professor de educação física da escola que se deitou sobre mim aos 11 anos de idade e que em 20 anos eu nunca consegui contar a ninguém. Eu berrei minha incapacidade de dizer um não que valesse algo ao meu primeiro namorado na minha primeira vez. Eu berrei tudo o que eu permiti que o pai da minha filha falasse sobre mim nos corredores do colégio quando eu estava grávida. Eu berrei todos os julgamentos sobre a minha sexualidade. Eu berrei todos os toques que eu não quis receber no meu corpo e fui incapaz interromper. Eu berrei o que eu aceitei sem querer aceitar. Eu berrei toda a confusão entre sexo e amor. Eu berrei todas as vezes que os homens só me amaram enquanto eu fiz o que eles queriam. Eu berrei muito alto, da profundeza da minha alma. Foi o maior berro da minha vida. E valeu por toda ela.
Aquele texto que faz você prender a respiração durante a leitura pela tensão da Cena descrita e fazer você expirar aliviada no final! ? Simplesmente amo o jeito com que toca as pessoas com as palavras!
Feliz e agradecida em receber seu carinho em forma de comentário, Oliveira Dora.
E berrou por mim com esse texto, Paulinha… <3
Um berro por todas nós, Fernanda. Receba meu amor. Saudades.