Há rondando sobre nós uma entidade superior que a tudo governa: o Sistema – assim mesmo, com letra maiúscula, por estar se transformando praticamente em uma divindade do mundo moderno. Se vamos a um hospital e estão “Sem Sistema”, mesmo que 10 médicos estejam disponíveis, eles não podem atendê-lo. Se vamos ao banco e estão “Sem Sistema”, você pode ter milhões na sua conta, mas você vai sair de lá sem um centavo a mais no bolso. Se você vai ao Detran, sua carteira de motorista está pronta e impressa na mão da atendente, mas estão “Sem Sistema”, você é obrigado a voltar no dia seguinte. Até na locadora de filmes, o DVD está na prateleira e você só precisa que o atendente faça algum registro, mas estão “Sem Sistema” e você fica sem seu entretenimento.
O Sistema tornou-se um ente superior que a tudo controla, que a todos dita o que pode ou não pode ser executado, que possibilita que as operações sejam feitas e as demandas atendidas. Vivemos governados pelo Sistema, dependentes de seu bom funcionamento para que os serviços, burocracias e as próprias pessoas possam fluir.
Sou um tanto avessa a esse modo de vida moderno impregnado de burocracias, mas como estou aqui no ambiente urbano e optei por essa vida da cidade por enquanto, me recomponho por dentro e enfrento a submissão ao ser superior Sistema quando é necessário – e cada vez mais ele é necessário.
O Sistema está impregnando tanto as relações sociais que deixamos de prestar alguns serviços por pura dependência da máquina-tecnológica-burocrática-organizadora-de-tudo que se constitui e assim, numa combinação de surpresa com consternação, presenciei, nos primeiros dias de aula da minha filha, o quão cruel pode estar se tornando essa lógica moderna de tratos sociais, culturais e econômicos imposta pelo Sistema.
A Clara estuda no La Salle, uma instituição que tem filosofia “humanista”, e por eu estar mais interessada em priorizar as relações afetivas e emocionais da minha filha que os estudos em si, optei pelo colégio. É uma forma de priorizar um mundo mais humano do que um mundo técnico. E em três anos de relações com o colégio ela estabeleceu amizades e convívios que aprimoraram suas múltiplas inteligencias, o que muito me alegra. Para nossa surpresa, dias antes do início das aulas, ao consultarmos o Sistema Online, verificamos que as amigas que vieram estudando na mesma turma há três anos foram separadas. Logo imaginei que fosse por causa de algum desacordo acadêmico-pedagógico. Inclusive preferiria mil vezes que o coordenador tivesse essa conversa comigo e com a Clara “mãe, sua filha bagunçou demais, tivemos que trocar ela de sala”, seria mais humana, mas não, a conversa foi outra:
– Senhor coordenador, bom dia, é a Paula, mãe da Clara…. queria saber quando posso fazer a solicitação para que minha filha seja mudada de sala pois sua amiga de estudos está em outra turma.
– A mãe da Clara, não se preocupe, isso acontece mesmo, utilizamos um Sistema Randômico e ele distribui as crianças aleatoriamente entre as classes, se elas ficaram três anos juntas foi por pura sorte.
Nem continuei a ligação. Falei “ahãm” e logo desliguei sem querer acreditar na metodologia que usam. Sistema Randômico?! Fui até o colégio para ouvir outra coisa.
– Mãe, você já fez sua parte vindo aqui, mas usamos um sistema randômico para determinar a turma dos alunos, não podemos fazer mudanças, o sistema nem permite. Mudanças estão restritas a problemas de saúde e de aprendizado.
As meninas se mobilizaram e foram à coordenação. Foram à direção. Foram ao pedagogo. Foram com o professor regente. Pediram. Choraram. Imploraram.
– Não podemos atender. Vocês têm que conseguir fazer novas amizades, a vida é assim mesmo.
“A vida é assim mesmo”. Realmente. Creio que em dois dias de aula o La Salle ensinou duas coisas muito úteis para minha filha: uma é que a filosofia narrada nem sempre é a filosofia colocada em prática “uma escola humanista” é bem diferente de uma escola que usa um sistema randômico para distribuir seus alunos entre as salas; outra é que somos mesmos governados por um Sistema que facilita as burocracias e emburrece as relações pessoais.
Paula,
quantos pensamentos, quantos sentimentos, quantas sensações me passaram durante a leitura do seu texto.
Algumas vezes achei engraçado, em outras achei um absurdo, às vezes deu revolta, e por demais até indignação…
Há bem pouco tempo atrás o Ser Supremo era chamado de Deus, independente da religião,
mas na era tecnológica e informatizada, até Deus terá que ser adequar ao Sistema, afinal é bem possível que Ele mesmo terá que ter o seu próprio Sistema, afinal gerenciar a humanidade e tudo o que rola no planeta, só mesmo um Sistema de última geração.
– Ah, meu Deus, onde vamos parar?
Ops, até isso é preciso mudar – a expressão passará a ser:
Ah, meu Sistema, onde vamos parar? – Rsrsrs…
E o Sistema certamente dará uma resposta automática:
“Estamos temporariamente off-line, tente mais tarde!”
Rsrsrsrs… impressionante, mas é assim mesmo.
Bjo com carinho e saudades.
Impressionante e deve haver algum modo de mudar essa história…
Querida Paula
Você expressou muito bem as sensações que cotidianamente nos deparamos com o Mr. Sistema. Realmente foi uma pancada emocional muito forte separar as meninas a Ana, a Clara, a Bia,a Bianca, Júlia entre outras, após tantos anos… O Sr. Sistema representado por um funcionário do La Salle foi mais adiante e grifou: “a vida também é feita de negações (…) as crianças tem que aprender a conviver com isso”, e retruquei que estava ligando como cliente e mãe e o que eu puder fazer pra tornar a vida da minha filha melhor eu farei e tentarei sempre. A resposta até hoje foi negativa, estou aguardando os resultados das notas, pois até hoje, nunca tive problemas com o desempenho de minhas filhas e nem sou neurótica por notas brilhantes, mas elas “mandam” bem. Falei da importância da afetividade na educação o que parece não ser avaliado neste sentido da possibilidade da troca de turma… O que mais dói é perceber a tristeza nos olhinhos destas adoráveis meninas! Ops! Esqueci devemos ter uma visão aleatória…randômica afinal sofrer faz parte da vida, não é Sr. Sistema?
Sistema terrível que não tem inteligência emocional nenhuma.
O triste disso é pensar que sistema nenhum tem que ser assim. Na realidade, isso não passa de ignorância e/ou preguiça de quem o opera. Essas barreiras impostas por “sistemas” são convenientes pra quem as anuncia. Quer dizer, colocam a culpa no sistema e então podem se eximir de fazer um trabalho mais cuidadoso. O programa só faz o que mandaram ele fazer! Inclusive acredito que com pressão suficiente o “sistema” (i.e., o responsável por isso na instituição) cede. Isso que nós vemos não passa de um sinal: é a forma como a nossa cultura se apropria da tecnologia. É, de fato, o novo Deus…
Vamos em busca de um mundo sem sistemas…. =))