OS TAIS 50 TONS DE CINZA sobre relacionamentos abusivos

Fomos eu e a Clara na terra de Portugal assistir ao famosíssimo e badalado “50 tons de cinza” que por aqui se chama “As 50 sombras de Grey”. Fui até com um pouco de receio depois de tanto alvoroço… E a Clara preferiu sentar bem distante, talvez para evitar tons de vermelho no rosto.

E então, entre legendas com expressões típicas de Portugal, lá estava ele… Christian Grey.

Os jogos de câmera fazem questão de arrancar suspiros da plateia, que era, em sua maioria, de mulheres.

Agora pense em um homem mala! Você está diante dele: Christian Grey.

Mas esse é um filme de mais vidas comuns do que você pode imaginar…

Bonitão, engomadíssimo, cheio de problemas de relacionamento e excessivamente invasivo e pegajoso. Para mim o momento auge nem foi quando ele abriu a porta daquele quarto vermelho dos fetiches, foi quando ele resolveu, por conta própria, vender o fusca da sua namorada enamorada, a candidada a submissa da vez. Aquela foi demais e o senhor Grey ganhou o posto de mala maior do cinema mundial para mim.

Há outras partes dramáticas além da venda do Fusquinha sem consulta prévia da mocinha. Como quando ele chega do nada no meio do almoço dela com a mãe, em outra cidade, e a captura para fazer um voo megalomaníaco. “O entrão Grey”, meu título sugerido. Vamos ao que o filme traz que os pastores desejam com tanto fervor que suas fiéis não assistam.

Esse é um filme sobre relacionamentos. E é uma excelente metáfora da vida real.
L9xiyPC

Tem suas cenas de sexo, tem aquele gosto do senhor Grey por sexo com dor e traz o bom sexo no estilo Hollywood: prazer exagerado com o toque de glamour de uma boa trilha e um bom ângulo da câmera e luz. Nada que você ainda não tenha visto.  E trata de mais vidas reais do que podemos pensar.

Na história há uma trama estilo Hollywood em que o bonitão, depois de tanto flertar com a guria bela e doce, apresenta um contrato para que o relacionamento aconteça. Nesse contrato ela tem a oportunidade de aceitar vivenciar o relacionamento como sua “submissa”.

Sim, submissa quer dizer fazer tudo o que ele desejar, o que envolve não só chamá-lo de coisas do tipo “senhor, meu rei”, como também fazer todas as encenações sexuais que misturam sexo e dor. No caso, ela aceitaria se quisesse. No caso da vida real, o mesmo.

Na história do filme a personagem é uma moça apaixonada, totalmente encantada com aquele homem poderoso, de corpo atlético e cheio de caras e bocas. Ela tem um bom motivo para ficar: está apaixonada. É o que faz ela pesar em sua própria balança o quanto o lado bom se sobrepõe ao lado ruim.  E a história fica entre as idas e vindas de “assino ou não assino”. Enquanto isso ela vai ganhando umas amostras do que será sua vida depois que assinar o bendito do contrato, algumas no nível “um tapinha não dói”, outras do tipo “um tapinha pode doer bastante”. Mas faz tudo porque aceita e pode parar quando quiser – detalhe importante da trama, porque deixa bem claro que aquela relação de abuso era consentida.

Ele sente um prazer imenso em cercá-la de todos os cuidados e todos os carinhos – e na concepção dele, vender o fusca, consertar o computador e aparecer no almoço eram agrados. Pode resolver sua vida, ser o super herói, o provedor maior. Pode fazer coisas surpreendentes. Pode negociar concessões. Mas não é capaz de lhe dar presença, e aí está o drama da mocinha apaixonada.  Ele não pode dormir com ela à noite e para que ela tenha um homem dos sonhos ao seu lado, precisa ser a mulher submissa que ele tanto quer. No fundo, ela permanece porque estando apaixonada, tem esperança de modificar o homem perturbado dos seus sonhos em apenas o homem dos seus sonhos.

E por aí fica a história. E por aí ficam tantas e tantas histórias de relacionamentos.

E em tantos e tantos relacionamentos está a ocorrer a mesma coisa, estamos a receber os mesmos recados. “Faça como eu quero e você ganhará o mundo, mas faça o que eu não gosto e você vai sofrer as consequências”. Quantas amostras de pequenas punições diárias e cotidianas nós não temos?

Ficam as tantas histórias de “homem feliz, mulher carente”, como canta a Maria Gadú. Felicidade sexual para homens que são trocadas por felicidades materiais para mulheres – e mulheres consentindo esse tipo de relacionamento porque ao pesarem na balança, perceberam que preferem ficar. Outras tantas histórias de mulheres que se tornam tão submissas e dependentes de seus homens que aleijaram suas próprias vidas. Outras tantas histórias de mulheres que se dedicam por anos e anos, talvez por uma vida inteira, na busca por tentar modificar seu homem em homem dos seus sonhos. E a sequela que as histórias de princesa deixaram em nós de que temos que ser salvas por um príncipe porque sozinhas não somos capazes de sair daquela bendita torre.

Não há como julgar. Nem a namorada enamorada nem a esposa que mesmo depois de anos apanhando do marido preferiu ficar. Cada um com suas balanças, cada um com seus pesos e medidas.

Mas o que estamos permitindo? Quais situações de abuso estamos consentindo num contrato silencioso?

A escolha de ficar é sempre individual. A escolha de permanecer vivendo histórias de abuso físico, emocional, espiritual será sempre individual. Mesmo que muitas variáveis estejam envolvidas, as mais dramáticas que podem haver,  ainda assim teremos algo para colocar na balança e pesar para permanecer. Muitas vezes o que pesa é a esperança de que o relacionamento se transforme (e bem acho que vai acontecer com aquele mala de marca maior, senhor Grey).

Vi alguns líderes religiosos escrevendo que suas fiéis não deveriam assistir esse filme. Ah, como seria bom que fossem assistir com os olhos bem abertos e a mente desperta para o que ocorre bem diante delas. E eu recomendo sim que você assista a esse filme. Mas assista desperto, enxergando as relações humanas e os relacionamentos bem diante de você.

Controle e submissão não têm nada a ver com amor, têm a ver com posse. Diferenciar isso é o despertar que precisamos para viver relacionamentos mais plenos, mais saudáveis, mais libertos e, de fato, mais amorosos.

Paula Quintão. 2015

 

assine_newsletterb

banner_novoeu

4 Comments

  1. Andreia Bego

    Não li o livro nem assisti o filme, e pelo jeito não perdi nada. Paula, adorei o texto e mais uma vez refletindo sobre a educação de liberdade com responsabilidade que recebi dos meus queridos pais, me tornei uma pessoa independente e segura, que consegue diferenciar um relacionamento saudável de um doente disfarçado de feliz que tanto vejo ao redor. beijos

  2. Nádia

    Olá Paula, te sigo já a algum tempo e com tanta informação o tempo pra leitura fica uma loucura. Li o livro e vi o filme, inclusive levei o marido que não gostou e achou um absurdo. Ocorre que atualmente estou desenvolvendo um trabalho para apoiar mulheres que são abusadas moralmente porém me encontrei em um grande obstáculo pois vivo em um relacionamento abusivo, e se isso acontece minha integridade não permite que eu conduza mulheres a se conectarem e libertarem se eu ainda estou nesta fase. Esta foi a primeira vez que mesmo após as leituras dos livros e filme eu não tinha me dado conta de quão semelhante é o meu casamento com o que se passa na história da trilogia. Sentimento de pêsames a mim mesma, triste por ter esta marca em minha vida, mas calma e tranquila por saber que a porta continua aberta pra mim a qualquer momento e que tenho zilhões de novos caminhos saudáveis a seguir. Abraços, Nádia

    1. Paula Quintão

      Nádia, querida, muito profunda sua percepção e muito lindo o seu despertar, porque ele é que te faz ver a sua porta. Eu só consegui chegar a essas conclusões porque também eu vivi meus relacionamentos abusivos, desses em que o amor é como uma mercadoria de troca por um bom comportamento. Siga no seu passo rumo à sua libertação. Grande abraço, Paula.

Deixe um comentário para Paula Quintão Cancelar resposta