POR QUE EU ESCOLHO QUEM, QUANDO E COMO VOU AMAR? Sobre o amor e suas condições

Não foi a primeira vez. E não se passou só comigo. Um relacionamento amoroso termina e todo o amor anunciado e partilhado se transforma em raiva ou em desprezo. Não foram todos os meus relacionamentos que tiveram esse desfecho, mas a maioria deles sim. Eu me vi diante de homens – e às vezes seus familiares ou amigos – que me amavam num momento da história e depois queriam que eu desaparecesse da face da terra.

Por que fazemos isso?

Hoje escrevo sobre o amor e suas condições. Sobre nossa necessidade de escolher quem amo, quando amo, porque amo, quanto amo e como eu amo.

Há uns três ou quatro anos eu estava num relacionamento curto, mas muito profundo. Foram poucos meses que estivemos juntos, mas nesse período estávamos realmente no céu. Em três meses de relacionamento eu devorei quase uma centena de livros de filosofia, tudo o que ele me indicava eu lia, e nós dois vivíamos nossas horas numa rendição plena.

Mas por mérito dos caminhos nosso relacionamento acabou e o contexto impedia que ficássemos juntos. Foi bem difícil para nós dois aquele rompimento. E a reação dele foi iniciar no ambiente de trabalho uma perseguição tão intensa de tudo o que eu fazia. O seu objetivo em todas as reuniões era me desmerecer. Todos os projetos que eu apresentava estavam horríveis. Tudo o que eu dizia era péssimo e estava errado. Todas as oportunidades que ele tinha para criticar meu trabalho eram super bem aproveitadas, numa fúria calculada. Minhas ideias que antes eram ótimas, brilhantes e fantásticas, haviam se transformado em ideias horríveis, inapropriadas e toscas.

E eu, diante daquele homem tão obcecado na destruição, que tudo o que eu via era o monstro do lago ness diante de mim. Nenhuma faísca do amor cintilante rondava no meu coração mais, eu tinha quase pânico dele.

Por que agimos assim… amando tanto aquele que é e faz o que queremos… e rejeitando tanto quem não quer estar mais ao nosso lado?

Foram necessários muitos meses para eu entender o quão fortalecedor aquele relacionamento e aquele desfecho foi. O tempo me deu clareza sobre o quanto aquele homem e aquela reação depois do nosso rompimento tinha trazido transformações profundas para a minha vida.

E a principal delas é sobre o quanto condicionamos nosso amor. Quando falo de amor incondicional não estou falando em amor romântico e em viver relacionamentos a dois custe o que custar, estou falando em estar sintonizado com o sentimento de amor, com o sentimento de afeto, com o sentimento de gratidão – ao invés de nos sintonizar com a raiva, com a culpa, com o medo, com o ressentimento, com do desprezo e com o sofrimento.

A mensagem que a condição nos traz é “eu te amo se….”

Fazemos isso todo o tempo.

E não fazemos só dentro dos relacionamentos a dois. Fazemos em tudo.

Fomos treinados assim desde pequenos. “Mamãe te ama muito”… dizemos quando o filho apronta a mesa ou arruma a cama pela manhã. Diante do banheiro desarrumado ou dos sapatos espalhados por toda a casa não reagimos com “mamãe te ama muito”. O amor tem espaço e hora para acontecer e ser anunciado.

Emanamos um olhar de amor quando o outro faz escolhas que nos agradam, quando o outro faz escolhas que nos escolhem, mas esse olhar não é o mesmo quando o outro faz escolhas que nos desagradam.

Por que escolhemos como amar? quanto amar? quando amar? por que amar?

Por que colocamos tantas condições para viver o amor?

Estou me fazendo essas perguntas há muitos meses, porque sei que há um caminho para amar sem condições. Muitos dos quilômetros que andei por Santiago de Compostela foram para responder a essa questão.

E tive, diante de mim, um quebra-cabeça montado, onde sempre vai caber uma peça a mais, mas que hoje já forma uma bela paisagem.

Esse quebra-cabeça pode começar a ser visto se você fizer um exercício de imaginação… Imagine que seu ombro esteja ferido. Alguém vem abraçar você. Na mesma hora, mesmo querendo receber o abraço, instintivamente, você recua seu ombro, num momento de proteção.

Esse movimento de proteção é o que fazemos quando temos qualquer ferida.

Ao mesmo tempo, quando estamos machucados, nosso nível de sensibilidade aumenta muito. Quem já teve uma unha do pé inflamada sabe bem isso. Qualquer lugar que vamos tem alguém para pisar no nosso pé ou uma pedra para tropeçarmos. Não é que mais pessoas pisam no nosso pé nem que mais pedras surjam, é que a dor deixa mais sensíveis a esses impactos.

E o que essas feridas têm a ver com o amor?

Aí se forma uma parte do quebra-cabeça.

Da mesma forma que temos feridas físicas, temos também feridas emocionais.

Feridas emocionais são todos aqueles machucados não curados que ficam em nossa alma e mente como partes sensíveis e que tentamos proteger. Quando alguém vem se aproximando demais dessas feridas emocionais, tal como fazemos com nosso ombro ferido, fazemos também nas emoções… damos uma recuada.

Tudo o que nos incomoda, tudo o que nos irrita, tudo o que nos chateia, tudo o que nos faz criticar o outro, tudo o que nos faz chorar e sofrer, tudo o que nos faz ter raiva… é algo que tocou a ferida.

Todas as nossas dificuldades, confusões, medos, inseguranças e comparações só acontecem porque há uma ferida aberta. A ferida aberta ativa o nosso ego, que é nosso senso de defesa e proteção, nosso senso de poder pessoal num nível “ouriçado”. Enquanto estamos presos na camada do ego “ouriçado”, não conseguimos chegar na camada do coração. A camada do coração, quando vivida plenamente, nos faz viver o amor incondicional, o amor sem condições.


ferida

 

Há um ditado oriental muito poderoso, ele diz “incomodou, doeu, toma que é seu”. A sabedoria desse ditado é enorme, porque ela nos entrega a responsabilidade pelo que nos incomoda, ela nos lembra que o problema não está no abraço e nem na pedra, mas no ombro e na unha feridos.

Nunca é o outro que nos incomodou. Nunca é a pedra que fez doer nossa unha machucada. O incômodo e a ferida já estavam dentro de nós, o que vem de fora é só um revelador daquilo que dentro de nós estava ferido.

Enquanto tentamos proteger o machucado, não conseguimos amar incondicionalmente. Enquanto tentamos proteger a ferida, evitando a pedra ou o abraço, nós só conseguimos “amar se…”, pois o nosso medo de sentir a dor é muito grande. Agimos num movimento de proteção das partes feridas e não podemos viver toda a nossa vulnerabilidade porque se não protegemos corremos o risco de nos machucar ainda mais.

E aí está o ponto de virada.

Enquanto estamos num movimento de proteção e num movimento que evita a vivência da nossa vulnerabilidade, não amamos plenamente. Não nos libertamos de muitas amarras. E não nos iluminamos. É como não viver plenamente. É como poder correr, mas correr tentando não chutar nada e não encostar o ombro em lugar algum. Corremos, mas corremos com limitações.

Só poderemos amar livremente – e nos iluminar – quando todas as feridas estiverem curadas. Amar profundamente a nós mesmos, sem condições. E amar profundamente o outro e o mundo, sem condições.

E olhando assim pode parecer uma missão impossível a cura das feridas. Mas descobri também, formando outras partes do mesmo quebra-cabeça, que não é.

O processo de cura das feridas é um processo que envolve dedicar tempo e atenção. Imagine seu mesmo ombro ferido. Ou sua unha do pé machucada. Para que eles se curem, é preciso fazer um tratamento. Ou um tratamento com remédios da farmácia, ou um tratamento com reiki, ou um tratamento com ervas do seu quintal. Mas ainda assim é preciso fazer um tratamento. E tratamento nada mais é do que um processo em que você dedica seu olhar e sua atenção. Ao dedicar seu olhar e sua atenção você está possibilitando a cura.

Mas imagina que você tem esse ombro ferido e ao invés de olhar e cuidar, você coloque uma blusa e esqueça o ombro. Ou seu pé machucado… você coloca um sapato e esquece o machucado… As feridas só vão piorar. Corre o risco de você ter uma inflamação grave. Nem que seja um tratamento simples com água limpa você precisa fazer.

O mesmo com nossas feridas emocionais. Ao olhar para cada uma delas, olhar com amor e atenção, você está possibilitando a cura. E quando começamos a olhar para cada uma delas, vamos descobrindo que quase todas, se não todas, aconteceram na nossa infância. Vive, dentro de todos nós, com raras e iluminadas exceções, uma criança ferida. Algum machucado sempre tem, porque quando não tem, nós ultrapassamos o ego e vamos viver o amor incondicional. Amamos a todo, amamos todo o tempo, somos só amor.

Se você vai colocando todas elas debaixo do tapete, fingindo que não estão ali e tocando sua vida como se nada tivesse acontecido, ignorando essas feridas, elas inflamam e você vai ficando com cada vez mais pendências…. sua sensibilidade vai só aumentando… sua proteção vai só aumentando… seus incômodos vão só aumentando e seu ego vai ficando cada vez mais “ouriçado”. E, logicamente, seu coração vai ficando cada vez mais inacessível e as condições para amar vão crescendo e crescendo.

A cura das feridas emocionais passa pela atenção, pelo cuidado, pelo tempo doado para nos tratar. Porque dar atenção é dar amor, dar amor é levar luz, levar luz iluminar as sombras, e iluminar as sombras é curar. E tudo o que nossa ferida precisa é de cura. Ao curar, nos libertamos.

Paula Quintão

06 de dezembro de 2015

 

 

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4 Comments

  1. Elair Floriano

    É o amor que cura mesmo, fora e dentro. E o exercício do amor incondicional é a grande chave para abrir as portas, libertar, e permitir o acesso ao que mora de melhor no coração. Gratidão.

  2. Cristiane Rosa

    Tenho acompanhado seus textos há algum tempo. Mas este de fato tocou-me muito profundamente. Tenho me aventurado na busca pelo auto conhecimento e, recentemente, fui diagnosticada com fibromialgia. Ou seja, as “feridas inflamaram”, estão vindo à tona e só mesmo com muita atenção e amor poderão ser curadas de fato. Obrigada!

  3. Brenna Jurchacks

    Paula, lindas palavras! Sou muito grata pelos seus textos.
    ”A cura das feridas emocionais passa pela atenção, pelo cuidado, pelo tempo doado para nos tratar. Porque dar atenção é dar amor, dar amor é levar luz, levar luz iluminar as sombras, e iluminar as sombras é curar. E tudo o que nossa ferida precisa é de cura. Ao curar, nos libertamos.” As feridas são sempre aprendizados, nos tornam mais fortes e nos liberta.
    Como disse Vinicius de morais, ”Que o amor seja eterno enquanto dure”
    obrigada Paula!

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