PORTAS ABERTAS PARA A VIDA sobre minha avó Selma e sua incrível sabedoria de viver o agora

Ontem minha postagem de facebook e instagram sobre a beleza que é a postura da minha avó Selma em deixar sempre a porta aberta rendeu tantos emails e mensagens, que hoje, manhã de domingo, me iluminou que eu precisava republicar um texto que escrevi sobre ela há alguns anos (em agosto de 2013).

Eu sempre me emociono muito com a presença da minha avó. Aqui está o texto de 2013 que com alegria republico hoje.

Com carinho, Paula Quintão

MINHA AVÓS SELMA E SUA INCRÍVEL SABEDORIA DE VIVER O AGORA

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Mais uma vez, lá estava ela na sala com seu acordeon dançando em passos curtos “um tico tico lá, um tico tico cá”. Chegar à casa dos meus avós é encontrar minha avó rindo de suas próprias graças, dançando as músicas que durante toda a minha vida só vejo ela cantar, tocando flauta ou violão ou teclado ou qualquer outro instrumento que ela se interesse. Chegar à casa dos meus avós é encontrar minha avó sempre feliz nos recebendo de sorriso aberto. E ir embora da casa dos meus avós é levar pra minha casa uma sacola com coisas para comer: poderia ser um abacate, um pão que virou torrada ou alguns chup chups.

Houve um dia, que de tanto eu conviver com a alegria da minha avó, eu decidi que queria ter a mesma alegria dela para todo o sempre. Mesmo uma criança que ainda não racionaliza muito bem o que há de tão brilhante na vida da minha avó pode decidir rapidamente que quer viver como ela. Por muitos motivos ela não se enquadra no mundo endurecido dos adultos e seu espírito de criança faz seu mundo parecer muito mais incrível que os outros mundos ao seu redor. E não há nada que possa transformar tanto uma existência quanto manter vivo nosso espírito de criança – não um espírito infantil imaturo, mas o espírito de uma criança que sabe aproveitar o agora e doar amor espontaneamente. Minha avó sabe fazer tudo isso.

Primeiro porque ela tem uma lista de mil interesses. Ama dançar, fazer artesanatos, escrever músicas e poesias, fazer comidinhas para vender, cuidar das flores, tocar violão, teclado, acordeon, flauta. Pessoas com uma lista de muitos interesses são incrivelmente desapegadas porque sabem que a vida é mais do que aquilo que têm, mas aquilo que são e que vivem.

Segundo porque a “dona Selma” chora de rir dela mesma, literalmente. E assim é fácil ver que ela se ama imenso. Olha para os próprios feitos e quer contar às gargalhadas suas traquinagens. Mesmo tendo passado pela vida muito mais momentos duros que macios, ela enxerga todos os momentos como se fossem aveludados. Dia desses minha tia ligou pra ela querendo saber se estava tudo bem. “Ah, minha filha, estou bem sim, mas não estou tão ativa quanto antes com as coisas da casa, nem estou fazendo artesanatos, nem tocando flauta”. Minha tia logo se preocupou: “Mãe, o que é isso? Será que você está meio depressiva?!”. E ela, segurando o riso: “Não, estou totalmente viciada no facebook”. Contou a história pra todos os outros filhos morrendo de rir dela mesma. Viciada em facebook, ela faz até vídeos dela tocando seu violão, cantando, posta foto das suas flores e comenta as partilhas dos netos.

E é certo que aos 77 anos (oitenta anos agora em 2016) está viciada no facebook: cada dia faz um vídeo novo. Em alguns ela canta para a câmera alguma ópera, em outros ela toca violão, em outro declama uma poesia. Cheia de graça, ou como dizem no Amazonas: “confiada!”

Terceiro porque minha avó enxerga o mundo com os olhos de amor e de bondade, e vê em todos que a cerca os mesmos olhos de amor e bondade. Minha avó não fecha a porta de casa, nem mesmo quando ela vai à rua fazer alguma coisa. Nem mesmo quando ela está sozinha. Minha avó acredita na bondade e faz a bondade reinar. Quando eu fiquei grávida minha maior tristeza era causar decepção nas pessoas que me amavam, até porque a lista de julgamentos que se tem para fazer sobre uma adolescente grávida é longa. Minha avó se sentou ao meu lado, me abraçou e pediu meu pai para tirar uma foto nossa.

E mais: minha avó sabe partilhar, sabe viver em comunidade, sabe dividir. Sua geladeira pode estar vazia e a dispensa sem nada, mas ela encontra alguma coisa para colocar em nossas sacolas quando estamos indo embora. E ela sabe que isso não faz ela ter menos, sabe que quando um ou outro filho for lá vai acabar levando um saco de pães, ou um queijo, ou uma carne para o almoço. E se não levarem, ela mesma vai comprar, e está sempre tudo bem. A partilha não a faz ter menos, a faz sempre ter mais.

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Teve 9 filhos. 7 são homens. 2 são mulheres. Meu avô era descendente de italiano, então bem sabem como era explosivo. E todos os filhos são verdadeiros filhos do meu avô: o sangue ferve em todos. Minha avó, de dança em dança, de música em música, seguiu em frente coordenando suas crias. Um cuidava do outro e ela cuidava de todos. Às vezes jogando bolinha de gude no chão do terreiro, outras vezes enchendo o chevette velho com os filhos para passear. Dava seu jeito.

“Dona Selma” escreve poesias, músicas e cartas inspiradas. Quando era moça, fugiu do colégio, entre tantos motivos porque seu pai não queria que ela fosse “superior” aos seus irmãos.  Nem sei até que série minha avó estudou, o que não faz a menor diferença.  Sabedoria não se faz no banco da escola, e mesmo que em seus escritos uma ou duas palavras estiverem fora da norma ortográfica, minha avó tem tanto o que dizer que ortografia vira segundo plano. Regras de português só servem para que possamos nos entender uns aos outros, e não tem quem não entenda a minha avó.

Ela já quis saltar de paraquedas, mas um dos meus tios foi até o aeroclube de Barbacena buscá-la dizendo que se entrasse no avião iria direto para o hospício quando chegasse no solo depois do salto. Ela não saltou, mas foi a primeira a dizer “eu quero” quando eu contei que estava fazendo o curso de paraquedismo. Era a única a me ligar para perguntar como estava meu curso de paraquedismo, a me pedir para ver meus vídeos em queda livre e voando de paraquedas nos céus de Manaus.

Há poucos dias ela caiu e quebrou o fêmur. Disse que por causa de uma picada de aranha que levou há uns meses, sua labirintite piorou. “Depois da picada eu fico tonta e ando para trás em alta velocidade”. E antes mesmo de começarmos a rir, ela já está às gargalhadas. “Em alta velocidade, pensa bem!”. E agora ficará por três meses deitada esperando o fêmur se recuperar. “Meus filhos ficam só me vigiando, mas todos os dias eu levanto e vou ali arrumar a gaveta. Sou fujona”.

Quando meu avô morreu ficamos todos muito sentidos. Ele era o homem mais forte que eu conhecia e sei que se não tivesse fumado por tantos anos estaria aqui firme e forte. Mas todo aquele movimento de funeral realmente cansa e desgasta a energia de qualquer um.  E a principal preocupação era como seriam as reações da minha avó. Depois de 54 anos de casada, lá estava ela caminhando pelo cemitério acompanhando o enterro do meu avô. Nesse momento, ela deu os braços pra mim e pra minha irmã e soltou sua pérola inesquecível. “Vamos lá jogar o Antônio no buraco”. E começou a rir. “Se o Antônio ouvisse ia achar a maior graça. O Antônio chorava de rir comigo”. Da tristeza, a alegria. Do limão, a limonada.

Amo minha avó. E amo o jeito como vive sua vida. Ela faz a existência parecer fantástica. Faz os problemas se tornarem muito menores do que são. Faz o simples ganhar o maior brilho e a maior importância. Faz a vida ser leve e plena. E um viver assim é mesmo admirável.

Paula Quintão

21 de fevereiro de 2016

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19 Comments

  1. Claudio Maidana

    Muito bom e inspirador Paula.

    Ela deve ser uma pessoa incrível.

    ” Sabedoria não se faz no banco da escola” achei isso muito louco e real.

    Gratidão por tudo.

  2. Teresa Jesus

    Que delícia de texto!!! Vó é tudo de bom!!! Sou muito grata por ainda ter comigo minhas duas vós, me enchendo de ensinamentos e de quitutes gostosos!! Paula sua vó é uma fofa como a neta!! Bjs!

  3. Aline Madeira

    Paula, como sempre, seus textos são uma delícia de ler, são daquelas “coisas que enchem os olhos”, sempre leio e me sinto tocada por eles. E esse em especial, meu Deus, que gostoso “sentir” essa estória sobre sua Avó. Ela é um exemplo de “como devemos viver a vida”. De como podemos deixar a vida mais leve até nos momentos mais difíceis. Gratidão por compartilhar tamanho ensinamento e inspiração!

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