TEODORO, MEU MESTRE INDÍGENA DO MONTE RORAIMA


Costumo brincar que durante os 8 dias de expedição ao Monte Roraima convivendo com os indígenas aprendi muito mais que nos anos de doutorado. Foi a forma que encontrei para demonstrar que todos os conhecimentos são válidos, não só os que a academia nos oferece. Foi também a forma que encontrei para dizer que simplesmente amei tudo o que aprendi e que viveria de novo a experiência só para aprender mais e mais. E assim eu fiz: repeti a viagem ao Monte Roraima, obstinada, por três vezes em um só ano e em todas elas fiz a mesmo roteiro de rendição: 3 dias subida, 3 noites no topo e 2 dias descendo a Montanha. São dias de muita reflexão, principalmente porque saímos do turbilhão de trânsito, uso de celular, comunicações pela internet e ficamos sem energia elétrica, sem camas confortáveis, sem banhos quentes e sem banheiros.

Para que a expedição seja possível, a agência de viagem contrata os indígenas locais para serem carregadores das estruturas básicas do acampamento e da alimentação diária. Proporcionalmente há um indígena para cada integrante da expedição. Ou seja, se o nosso grupo tinha 11 pessoas, havia também 11 indígenas nos acompanhando.

As cargas dos indígenas são sempre muito mais pesadas que as nossas. Andam a equilibrar a “mochila” feita por eles mesmos, bem pouco adaptada às suas costas. Mesmo com tanto peso, estão sempre a nossa frente. E ainda conseguem aproveitar bem seu tempo contemplando a paisagem.

E foi nesses caminhos que me levaram até ao Roraima que conheci o Teodoro, um indígena admirável, que me enche de alegria só de pensar nele. Teodoro, como todos da sua comunidade de Paraitepuy, vive uma vida de muita simplicidade.

Paraitepuy é o vilarejo da Venezuela de onde iniciamos as caminhadas ao Monte e ali estão algumas construções tipicamente indígenas. Produzem alguma agricultura, mas principalmente consomem produtos de Santa Elena do Uairén, a cidade venezuelana mais próxima. A principal fonte de renda da comunidade é o turismo, por isso as épocas de grande temporada são as que os indígenas mais aproveitam para subir a montanha uma vez seguida à outra.


Caminhando pelas trilhas eu observava os passos do Teodoro. Curtos, precisos, velozes. Cansada, eu parava e perguntava “Teodoro, quanto tempo falta para chegar?”. Ele me olhava calado por uns instantes e respondia “Meia hora”. Andava, andava, andava. Meia hora, uma hora, duas horas e nada. “Teodoro, quanto tempo falta?!”. Silêncio e a resposta “Meia hora”.

Sim, ele estava sem relógio. Sim, ele não usa mesmo relógio. Não usa porque sua relação com o tempo é completamente diferente da nossa, é dinâmica, é cíclica, é feita da observação do amanhecer e do anoitecer, da posição do sol e das idas e vindas da natureza. O relógio é só uma convenção moderna para homogeneizarmos os tempos sociais, nada mais que isso. E é totalmente inútil para o Teodoro. Ele caminha pelo caminhar, dá o passo naquele tempo e é no passo que ele está. Parei de pensar no tempo que faltava e me coloquei a observar meu corpo, minha respiração, minha energia, minha vontade de comer algo, minha necessidade de fazer pausas para depois seguir em frente. Assim que interrompi minha preocupação com o tempo, fiquei completamente imersa no presente e vivi o caminho de uma forma incrivelmente especial. Trouxe para minha vida cotidiana o aprendizado, que é um exercício constante, de que posso estabelecer outra relação com meu tempo. Posso viver os compromissos e os prazos de uma forma mais leve e quando estou imersa em qualquer situação procuro voltar toda a minha atenção para ela, seus cheiros, suas possibilidades, a temperatura do ambiente, o que estou aprendendo ali.

Todas as vezes que eu chegava ao acampamento tinha a clara convicção que deveria ir o mais rápido possível para o banho. Fui orientada assim: antes que seu corpo esfrie, entre na água, pois depois vai ficar mais difícil. Os banhos são pequenos lagos no topo do Monte ou um rio que corre nos acampamentos da base. Num dos acampamentos eu não sabia ao certo onde ficava o pequeno lago para o banho e assim que deixei minha mochila, fui em direção ao Teodoro “Aonde fica o banho, Teodoro?!”. Mal terminei de formular a pergunta percebi que ele estava montando a cozinha para preparar o almoço. Reunia as panelas e ajeitava os ingredientes que usaria. “Ah, não precisa ver agora, Teodoro, pode terminar aí”. Mas ele sequer olhou para o que estava fazendo. Ele se levantou imediatamente e começou a me guiar pela montanha. Achei inacreditável: não ouvi nenhum “espera só um minutinho” ou “deixa só eu terminar aqui que já vou” ou “pode me esperar um pouco?” ou “me dê um tempo”. O Teodoro simplesmente levantou-se e colocou-se a me guiar. Seguiu por mais ou menos 5 minutos até que chegássemos ao lago. Foi até a lateral da água para me mostrar o caminho de volta e eu pude tomar meu banho com o corpo ainda quente da caminhada para evitar o frio desolador.


Nessa época eu trabalhava coordenando uma equipe de mais ou menos 30 pessoas e pra mim a atitude do Teodoro me fez pensar muitas vezes antes de pedir para quem quer que seja me esperar quando pediam minha ajuda. Às vezes eu estava digitando compulsivamente alguma resposta para um e-mail urgente e um colega me interrompia pedindo alguma ajuda. Antes de encontrar o Teodoro talvez eu seguisse na digitação mecânica e respondesse a quem me chamou assim mesmo, digitando, mas depois dessa experiência de muito aprendizado, eu fiz questão de fechar meu notebook por várias vezes e olhar nos olhos de quem estava precisando a minha atenção. Ainda hoje é um esforço enorme para mim despejar toda a atenção para quem está ao redor, até porque somos muito “chamados” pelas telas e por tudo o que é urgente, mas eu faço o exercício diariamente, sempre lembrando do Teodoro.

Com ele aprendi duas coisas fundamentais para minha vida: modificar minha relação com o tempo e ampliar o nível de atenção que ofereço para quem está comigo aqui e agora. São coisas bem simples e por isso mesmo incríveis, principalmente quando estamos imersos no cotidiano urbano somos atropelados pelos horários e prazos, pelas tarefas e por tudo os apelos eletrônicos que nos cercam. Teodoro tornou-se minha maior inspiração quando penso em quão linda pode ser a gentileza humana, em cuidado com o outro, em vivência do agora.  Simplesmente ADMIRÁVEL.

 

7 Comments

  1. Silas

    Engraçado quando que eu mudei minha percepção de tempo! Acredita que foi escrevendo um livro. Faz uns 4 anos, assim que terminei de escrever um livro e o personagem aprendeu a viver no presente, aprendi junto com ele. E eu nem tinha me dado conta até que fui participar de um curso sobre Psicologia Junguiana que uma baiana sensacional decidiu ministrar. Era um sábado por mês e tomei o hábito instintivo de remover o relógio antes das palestras começarem e me entregar completamente. Cronometrar é um hábito intimamente relacionado com controlar. Olhar no relógio significa lutar pelo controle das situação, tentando fazer com que ela se encaixe nas suas expectativas, nos seus planos.
    Mas com o tempo eu percebi que quando você não tem esse controle, quando não está com toda a sua atenção nele, acaba percebendo a beleza das coisas simples que estão em sua volta.
    Sempre que posso (porque a sociedade me impõe seu controle cronológico) eu saio pra faculdade andando com minha mochila/bigorna. Eu vou olhando o sol da manhã e cantando. Até em alemão eu já cantei, e sem vergonha! Dá tempo de colocar os pensamentos no lugar, o coração no lugar e, acima de tudo, de colocar o foco em coisas que nossa cultura esqueceu. Como o horizonte, os pássaros, plantas, a respiração!
    Em um mundo super organizado e pragmático, sem um pouquinho de loucura nós acabamos entrando em parafuso!

  2. Diógenes L. Cassiano

    E não se pode esquecer que, além de ser um excelente cozinheiro, Teodoro sempre leva pra montanha uma Pimenta que eu vou te falar, se ele fizesse pra vender ia ficar rico só de vender pros trekkers que sobem o monte com ele….

    É um desses seres humanos que nos fazem pensar que vale a pena tentar salvar esse planeta. De um conhecimento, força e cordialidade impressionante. E quando está em companhia do grande guia Léo Tarolla, aí sim. Fui brindado com uma overdose de conhecimento desses 2 cara extraordinários….

  3. Izilda E M araujo

    Paula, fiquei encantada com o seu depoimento sobre o Sr. Teodoro. Você, simplesmente, disse o que eu gostaria de dizer sobre ele. Estive na expedição de julho/2013 e posso testemunhar toda a sua narrativa. É uma incrível experiência de vida, de desapego e de imersão no mundo “fora da civilização” !!! Isso é o que denominamos, mas eles são muito mais civilizados que nós… eu achava incrível o quanto eles andavam, lá em cima do morro, para levar os utensílios e lava-los sem nenhuma preguiça…fora outras atividades como a montagem das barracas e o preparo das refeições. O índio Constantino que carregou a nossa bagagem, do meu esposo e minha, também me causou grande admiração. No último dia no rio tek e depois em Paraitepuy nós doamos roupas e calçados para eles. Assim que voltei para casa estampei camisetas para eles com fotos nossas com eles e enviei. O Léo e o Carlos que foram “meus anjos de guarda” enviei também umas placas comemorativas, pela 381º escalada do Carlos e por tudo que são e fazem na expedição. Que DEUS continue abençoando-os, pois eles são admiráveis. PARABÉNS, para vc

  4. Wânia Vernizze

    Estive lá em 21.12.2012, foi MARAVILHOSO, uma experiência incrível, lendo seu depoimento voltei……mais reflexões…..puxa….ainda aprendendo com o Monte Roraima, Teodoro, Léo, e o saudoso Marcelo,…..dias de mto frio, chuva, e eles sem roupas apropriadas, sempre rindo, plenos de gentilezas, nos ensinando…….GRATIDÃO Teodoro e toda equipe do Roraima Adventures.

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