Algumas cenas da minha vida são tão nítidas na minha memória que é como se eu tivesse feito um filme delas. Hoje sinto de escrever sobre um momento que passou pelos meus olhos em meu Caminho de Santiago e que faz parte do meu livro O Caminho Que As Estrelas Me Viram Cruzar (2017), em breve em lançamento.
Quero contar de uma lembrança e de como a minha alma foi capaz de fotografar aquele momento, absorver por completo cada pedacinho do que eu vivia.
Eu já estava me aproximando do final da minha peregrinação. Ainda não sabia que no dia seguinte eu estaria em Santiago de Compostela. E sob o sol que apareceu depois da chuva, aquele homem cuidava do seu cavalo, amaciava seu pelo, brincava em chamegos, passava a escova nos pelos com suavidade e se fundiam um ao outro.
Assim que meus olhos viram aquela cena eu parei. Diminui meus passos até que parei completamente pelo Caminho. Como havia beleza, como havia amor, como havia sensibilidade…
Era uma daquelas cenas que parece que tocam uma música própria. Eu ouvia naquele momento as canções de Maxi Giaconne em meu ipod, o inspirador do nome da minha editora, que permitiu que tudo ficasse ainda mais lindo e transcendental.
Cada pedacinho da imagem entrou pelos meus olhos, pedacinhos que até hoje permanecem vivos em mim. Eu me emocionei, chorei, senti as lágrimas escorrerem pelo meu rosto. Era tão simples e eu só queria estar ali, presente, eu mesma e tudo o que há ao redor. Nada além.
Os minutos foram longos em meu momento de apreciação e pude me lembrar que seria bom tirar uma foto. Perguntei ao moço com seu cavalo se eu poderia fotografá-los, fez que sim sorrindo e eu tirei a foto, fiz meu clique, me despedi e segui em frente. Segui emocionada e segui agradecida.
Emocionada por ter vivido um momento de tanta sensibilidade e acesso às minhas emoções, emocionada por aquele instante de tanto amor ter se apresentado pra mim e por eu ter a oportunidade de perceber o que se passava. Emocionada por ter fotografado muito mais com os olhos e com a alma do que com minhas lentes do celular ou no ipod.
Há um jeito bonito que a personagem de Kirsten Dunst, a Claire, no filme “Tudo Acontece Em Elizabeth Town” faz todas as vezes que ela quer guardar uma cena, é um gesto como se houvesse uma máquina fotográfica em sua mão, mas o que há é seu próprio olhar intencionando guardar em um lugar de lembrança aquele instante vivido. Sinto que esse gesto resume muitos momentos de nossas vidas e algumas das lições que essa vivência reservou pra mim.
Uma delas tem a ver com estarmos despertos para percebermos o que os Caminhos nos reservam, despertos para entrar em contato com singularidades e emoções. Tantas vezes no dia a dia eu caminho pelas ruas como uma cega que não vê nada ao redor, às vezes nem quem passa ao meu lado.
Outra lição tem a ver com nos manter presentes para sentir a emoção. Temos medo de sentir e nos anestesiamos logo pegando o celular pra uma filmagem, uma live, uns momentos stories. Nada contra a foto e as histórias, só sinto que fez diferença em minha vida priorizar sentir antes o que o momento me traz, inclusive perdendo a chance de ter a foto do instante às vezes, mas conseguir entrar em contato por inteiro com o momento.
E uma última lição é mais uma espécie de oração, meu pedido para que tenha olhos pra ver as sensibilidades que acontecem ao meu redor e não estar com tanta pressa ou tão cega para passar por elas despercebida. Essas cenas de lindezas da alma são um presente em meio a jornada de vida, bônus que nos fazem acumular muitos pontos de energia e gratidão. Pontos que nos abastecem para seguirmos viagem.
Paula Quintão
28 de maio de 2017