Para Ana Clara, minha amiga-anjo
Estava há mais de 30 dias andando. Caminhava algo como 20 km por dia. Alguns dias menos, 7km. Outros dias mais, 28km. Santiago cada vez mais próxima, mas posso dizer que há dias que eu me esquecia que estava indo a Santiago. Simplesmente arrumava minhas coisas e caminhava, caminhava, caminhava.
Aquela poderia ser uma manhã como outra qualquer: 6h, ainda noite, os peregrinos começam a arrumar suas mochilas no albergue (mesmo sendo noite). 6h30 alguém não resiste e acende a luz. 7h todos já se foram. Menos eu. Ajeitava tudo até às 8h, que era quando começava a amanhecer. E meu dia estava a seguiu mais ou menos esse script.
Mas então, algo novo. Um ônibus parou e desceram muitas, muitas, muitas e muitas pessoas. Depois pararam como mais 5 ônibus, e desceram muitas, muitas, muitas pessoas. Elas tinham algo em comum: todas usavam um lenço amarelo no pescoço e não tinham mochila. Por estarem sem mochila, andavam muito rápido. E por terem chegado naquele momento, estavam muito animadas tirando fotos e falando entre elas – em alemão.
Era uma excursão. Logo um e outro peregrino que eu já conhecia dos dias anteriores vinha trazendo um comentário, cada um de um jeito:
“São alemães, saíram todos de um ônibus”.
“São alemães, devem ser como mil”.
“São alemães, vão agora caminhar todos os dias até Santiago”.
“São alemães, um bando de turistas”
“São alemães, vieram em um grupo de 400 pessoas”.
“São alemães, e não vai sobrar lugar para a gente dormir no próximo povoado”.
O frisson foi geral entre os peregrinos que estavam a caminhar a mais dias, como se aquela chegada fosse uma verdadeira injustiça. “Como assim esses alemães chegam agora aos 45 do segundo tempo e pensam que são peregrinos?” Há um apelido pejorativo para esse tipo de peregrino: “turisgrino”.
Realmente o grupo dos alemães marcava presença.
Eles lotaram o caminho.
Os bares e restaurantes que geralmente ficam vazios estavam parecendo praça de alimentação do shopping.
Comecei a perceber que eu estava realmente irritada com todo o barulho ao redor, com as cantorias, com as pessoas que paravam bem na minha frente para tirar fotos… Quando me dei conta da minha irritação, percebi que tinha minhas duas escolhas: poderia me irritar muito com todos os barulhos, risos, conversas, lotações máximas do caminho ou poderia usar todos os dias de aprendizado para lidar com aquela situação com neutralidade. “Deve ser um teste para eu aplicar o que tantos dias de caminhada têm me ensinado”.
E assim eu fiz, numa luta interior para aquietar minhas irritações. Mantive meu estado de silêncio, mantive meu estado de calma. Cheguei a acelerar o passo em alguns momentos com medo de ficar sem lugar nos albergues para passar a noite, mas depois descobri que o grupo ficava num lugar só para eles porque estavam realmente com uma agência.
Nesse momento eu entrei num estado de observação e percebi o quanto nós somos capazes de julgar duramente os outros. Peregrinos muito em paz que estavam há dias caminhando comigo começaram a se irritar bastante com a presença dos alemães, começaram a criticar o fato de estarem lá só fazendo 4 dias de caminho sem suas mochilas.
Um senhor brasileiro me disse: “Essa experiência deles não serve de nada, voltam pra casa do mesmo jeito que chegaram. Andar quatro dias não é fazer o caminho”.
E nós sabemos o quanto todas as experiências, sejam elas quais forem, cada uma em sua medida, nos transformam em algo…
E o caminho, como eu já disse outras vezes, nada mais é do que uma metáfora da vida cotidiana, essa nossa vida de todos os dias.
Quantas vezes não olhamos o outro e julgamos suas escolhas?
O outro fez isso ou aquilo… olha que horror. A fulana está agora fazendo isso… olha que horror. O filho da vizinha agora está aprontando… olha que horror. Maria Maria vai se separar… olha que horror.
Acontece que a experiência do outro é a experiência do outro.
Acontece que as escolhas do outro são as escolhas do outro.
Acontece que o modo como o outro faz o caminho dele, a vida dele, é escolha dele, diz respeito a ele, e foi o melhor que ele podia fazer naquele momento. E você jamais terá dimensão da história que o trouxe até aquele momento, só ele sentiu o que sentiu, viveu o que viveu.
Mesmo que diante dos nossos olhos pareça uma grande bobagem, uma grande inutilidade, uma grande futilidade, uma grande perda de tempo, são nossos olhos de julgamento que estão classificando assim, porque a verdade é que o caminho do outro é o que há para o momento de vida dele. E pronto.
Por que precisamos ficar discutindo isso?
Por que precisamos nos sentar em torno da mesa e ficar falando sobre as escolhas que o outro fez?
Por que achamos que nossas escolhas são melhores?
Deixar que o outro viva o seu caminho, sem julgamentos, não tem a ver com libertar o outro, mas sim libertar você. Quando usamos nosso tempo e nossa energia para julgar o outro, estamos perdendo a oportunidade de viver as nossas próprias experiências por inteiro.
E aqui está um lindo episódio concreto disso, presente do próprio caminho para as minhas reflexões…
Tive, naquele dia, entre os alemães, uma das experiências mais ricas e emocionantes do meu caminho.
Uma das moças do grupo passou por mim e foi logo parando com duas de suas amigas. Acompanhei seu movimento de encontro com as amigas que estavam sentadas descansando, e quando eu olhei para o rosto da segunda moça que estava sentada…. ela era igual (igual!) a uma grande amiga que faleceu há alguns anos, uma amiga das mais queridas, mais felizes, mais doces que se pode ter. Ana Clara.
Aquela mulher era igual à minha amiga, igualzinha. Ela me olhou nos olhos e com toda a delicadeza do olhar, ternura completa, sussurrou “buen camino”.
Era como se a minha amiga estivesse ali, diante de mim, me desejando “um bom caminho”. Era como se ela estivesse ali a me dizer “eu estou bem, siga o seu caminho”.
Como eu chorei… Como eu agradeci aquele momento tão lindo…
Se eu estivesse a viver dentro de mim todos os julgamentos aos alemães, eu talvez não tivesse me dado conta daquele momento, porque os pensamentos teriam me capturado, eu não olharia no rosto deles. E se os alemães não estivessem ali, aquele momento que foi um presente não teria acontecido.
Cada um escolhe seus caminhos.
Cada um está fazendo o melhor que pode. Mesmo que o melhor do outro ainda esteja, segundo o seu olhar, muito horrível, ainda assim é a vida do outro, é o caminho do outro, é o processo dele, é o que há para hoje. Assim como o que você faz hoje é o que há de melhor para você. Não há melhor nem pior, há escolhas, há caminhos, há vidas que seguiram seus rumos e suas possibilidades.
Seguir no nosso caminho, olhando para o que a vida está reservando para nós, é o melhor modo de aproveitarmos ao máximo a nossa viagem, a nossa travessia, colhendo os presentes que nos foram reservados.
Paula Quintão
25 de outubro de 2015 (texto repostado do original em 10 de setembro de 2017)
Que partilha mais linda Paula! O que mais amo nesses seus textos é que viajo nas suas palavras e me imagino estando presente com você nesses momentos… visualizado todos os detalhes com clareza. Gratidão! <3
Linda história, Paula. Bela reflexão! Gratidão por compartilhar. Como já disse a Luciana, também me imaginei vivenciando os momentos contigo! 😀
Paulinha, seus textos com muita frequência em sintonia com meu caminhar…
Grata pelas palavras! <3
Nossa… Chorando muito após ler esse texto. O momento da pessoa que parecia com sua amiga. Imagino como se sentiu. Fiquei arrepiada. Beijos de luz pra ti sempre!