IR AO CAMINHO PARA APRENDER A CAMINHAR, sobre a vida trazer os ensinamentos que mais precisamos

Caminhava há 10 dias e meu corpo seguia bem. Quando comecei o Caminho de Santiago, mesmo sabendo que diante de mim estavam 800km a percorrer (ou quase 900km, caso eu resolvesse ir até Finesterre), toda essa distância não me deixava preocupada. Aprendi que a vida é mesmo esse um passo depois do outro.

Fui bem consciente de que com o passar dos dias meu corpo se sentiria ainda mais habituado a caminhar, caminhar e caminhar.

“É lá pelo décimo dia que seu corpo entra num estado de aceitação e tudo fica melhor”, um amigo me falou antes mesmo da minha partida.

Acontece que exatamente no décimo dia, uma dor terrível se instalou na minha perna. Talvez por causa da mochila pesada demais, talvez por causa da noite mal dormida… não sei o que houve. Mas de um minuto para o outro eu perdi o movimento de uma das pernas. Dor, dor, dor. Comecei a andar quase me arrastando.

Meu plano ainda era caminhar mais 12km aquele dia. O que se tornou impossível. Completei os 2km que me distanciavam do próximo lugarejo com muita dificuldade, andando muito lentamente, até que finalmente cheguei.

Nesse dia eu fiz reiki em mim mesma, tomei remédio, bebi litros e litros de água.

E foi um belo dia. Fiquei pensando que a dor na perna era um motivo para ficar naquela cidadezinha de rio, de águas que correm, de muito encanto. Nájera. Tudo naquele dia foi muito lindo e especial. Vivi momentos de muita cura às margens do rio entregando o que me pesava os ombros emocionalmente.

No dia seguinte, minha esperança era que a perna estivesse ok. Mas meia hora caminhando me mostrou que não estava.

Iniciei, novamente, meu rastejar.

“Paula, você poder ir bem devagar, vá até onde for possível com essa dor, sem ultrapassar seus limites”, eu conversei comigo mesma. Há poucos dias havia passado uma brasileira por mim que foi atleta e tinha um pacto com a dor. Ela dizia que por toda a vida sentia dores horríveis, todas as noites, e que a exceção era não ter dor, por isso já estava acostumada. Nos dias sem dor ela achava que tinha algo errado. Eu não tinha nenhum pacto de sentir dor ali. Nem ali, nem na vida.

Caminhava tão lenta que uma senhora francesa de 80 anos passou por mim, conversamos um pouco, ela ofereceu ajuda e antes de ir embora se despediu gritando, toda animada, “coragem”. Rimos da minha situação, celebramos a energia dela.

Fiquei olhando ela seguindo e ria sozinha.

“Courage”, recebi os seus votos.

Pouco depois disso, um senhor se aproximou.

“Muita dor?”, me perguntou.

Ele parecia uma águia. Sabe esses homens que andam de motocicleta, como as Harley Davidson, têm cabelos longos brancos e presos por uma gominha fina? Não tinha jaqueta preta de couro, porque afinal estávamos no Caminho de Santiago, mas na minha lembrança ele até tinha.

“É, está doendo desde ontem… vou caminhar até o próximo sítio e ficar por lá”.

E então algo mágico se iniciou. Eu estava prestes a ter uma lição sobre como caminhar durante a caminhada mais longa da minha vida.

“Vamos ajustar novamente sua mochila cuidando do seu ponto de dor”, ele me orientou e começou, ele mesmo, a puxar as tiras da mochila de um jeito que a fazia ficar bem alta e não mais pressionar a base das minhas costas. “Isso vai ajudar bastante”, me disse.

Andei três passos e senti que estava mesmo melhor.

“Agora você vai cuidar de como está seu passo”, ele olhava meus pés.

Minha cara era de questão.

“Faça o movimento completo do passo. Lá na frente… lá atrás… você está interrompendo o movimento completo, está quase marchando em passinhos curtos”.

“É que está doendo”.

“A dor veio porque o passo está incompleto, você precisa ir do início ao fim do movimento”.

Do início ao fim do movimento. Mesmo aumentando a dor, eu insisti em fazer o passo completo.

Ele ficou longos minutos ao meu lado observando minha aplicação da lição.

“Agora ajuste sua coluna, mantenha a coluna alinhada, sua mochila não precisa inclinar seu corpo para frente”.

Alinhei a coluna.

“Faça isso quando estiver subindo ou quando estiver descendo também. Nossa tendência é nos curvar para frente como se estivéssemos carregando o peso do mundo em nossas costas”.

Nesse momento ele levantou o olhar para outros peregrinos que passavam ao redor e foi me mostrando, um a um, como estavam todos curvados.

“E abra seus ombros”.

Abri.

“Vamos, abra mais seus ombros, abra os ombros como se você pudesse a qualquer instante abrir seus braços e dizer “I love my life, I love the world”, eu amo minha vida, eu amo o mundo”.

Que coisa linda, guardei a lembrança para chorar pensando nela depois.

Abrimos nós dois os braços, caminho na nossa frente, passos completos, coluna alinhada.

“I love my life, I love the world”.

Estava me sentindo leve. Totalmente diferente.

A dor ainda estava comigo, só que leve, suave.

Andamos em silêncio por um longo trecho, ele me observava, percebia se eu estava aplicando os três conceitos que me passou.

“Você está indo bem, como se sente?”

“Eu me sinto muito melhor, muito obrigada por tudo”.

“Eu sou terapeuta na Holanda, já fiz o Caminho de Santiago por 10 vezes, sempre tem alguém que posso ajudar, e sempre tem alguém que pode me ajudar em algo”.

“Obrigada por essas lições todas, estou muito emocionada, tudo muito lindo”.

“Ainda tem algo a mais que você pode fazer”.

Olhei novamente com minha cara de questão.

“Percebe que há uma força que te puxa para frente e que essa força se parece com um cabo de força que está preso ao centro do seu peito?”

Eu nunca havia pensado nisso. Precisei dar uns passos para observar que realmente era como se houvesse uma força que levava meu peito em direção ao próximo passo. Parecia mesmo haver um cabo de força.

“Essa força não era para estar no centro do peito, era para estar no seu umbigo”, ele ficou em silêncio esperando que eu processasse. “Quando a força vai para o nosso umbigo, entramos num equilíbrio. Além de terapeuta e além de fazer o caminho de santiago, eu sou dançarino há muitos anos. Sem esse centro de equilíbrio no umbigo, não conseguimos ser bons dançarinos”.

Na mesma hora eu me lembrei do meu curso de paraquedismo. Lá, em queda livre, se não colocamos o centro de equilíbrio e queda no umbigo, não estabilizamos. Só é possível descer em perfeição se o umbigo está bem direcionado ao chão.

Contei para ele do paraquedismo, ele sorriu.

“Coloque sua força no segundo chacra”

Nessa hora meu olhar foi de impressionada.

“Olha….”, levantei meu braço amarrado com fita laranjada… “Hoje é meu dia de trabalhar o segundo chacra”.

São esses encontros que me impressionam.

Andamos em silêncio por mais alguns instantes e depois nos despedimos.

Um anjo que me ensinou a caminhar em 4 etapas:

1. passos completos

2. coluna alinhada

3. ombros abertos

4. força direcionada ao umbigo

Essas quatro lições curaram completamente as dores da minha perna. Não senti mais nada. Pelos próximos dias eu tinha que a todo instante me concentrar em como estava andando, como uma criança que aprende pela primeira vez a dar seus primeiros passos.

As quatro lições e a história do senhor águia vindo da Holanda eu contei para muitas e muitas pessoas durante os dias de Santiago. Sei que muitas delas aprenderam a andar e curaram suas dores também graças ao ensinamento dele, que foi se multiplicando e multiplicando.

Ele se tornou um grande amigo. Vez ou outra, depois de longos dias sem nos ver, nos encontrávamos em alguma curva. Era uma felicidade todas as vezes, vibrávamos e sorríamos, partilhávamos novas histórias vividas nos últimos dias.

Nos despedimos um dia antes da minha chegada a Santiago, tomando um café em Ribadiso. Ele nunca soube meu nome. Eu nunca soube o nome dele. Tenho um e-mail, que qualquer dia usarei para fazer contato. O que é o de menos. Estamos vivos dentro um do outro, em sabedorias, é assim a vida.

Paula Quintão

22 de novembro de 2015

 

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34 Comments

  1. Anderson Ims

    Muito legal sua história. Impressionante como a vida é inteligente e nos coloca pessoas como este senhor em nossas vidas. Cabe a cada um entender isso e colocar em prática. Isso tbm é inteligência. Parabéns e obrigado por compartilhar.

  2. Beatriz Klock

    Que lindo texto, Paula. Que experiência divina, que encontro inesperado tão cheio de ensinamentos. Estar aberta para a vida dessa forma é a maior lição que tirei do seu texto. Ser receptiva e deixar fluir, sair da zona de conforto é um desafio e tanto mas muito compensador. Adorei!

  3. Beatriz Klock

    Que lindo texto, Paula. Que divino, que encontro inesperado tão cheio de ensinamentos. Estar aberta para a vida dessa forma é a maior lição que tirei do seu texto. Ser receptiva e deixar fluir, sair da zona de conforto é um desafio e tanto mas muito compensador. Adorei!

  4. Rico Oliveira

    Pois é, Paula….a cada passo de sua jornada, nos encantamos com seus relatos de histórias vividas. Somos gratos pela entrega! Interessante analisar que em geral aprendemos com nosso próprio sofrimento, mas em regra, nós mesmos vivenciamos todo o processo, ou seja, desde o ato certo ou errado que origina a dor, passamos a sofrer e daí, somos levados a aprender com isso. No seu caso, outra pessoa fez toda a leitura do sofrimento alheio e de forma autruísta sanou toda a pane. O melhor foi perceber ser esta a missão. Tanto deste emissário do bem, quanto a sua, Paula, que absorveu, difundiu e eternizou essa linda mensagem. Avante!!!!!

  5. Ricardo Basilio

    Grande Paula, que experiência linda, que conhecimento fascinante. A liberdade e a autonomia em aprender a aprender; a viver intensamente e a replicar as pessoas aprendizados como um verdadeiro ato de plena gratidão, faz de você uma verdadeira “educadora da vida”. Gratidão imensa por partilhar essa incrível história de cura e liberdade. Beijo grande e que a sua estrela continue brilhando no mundo e em nosso mundo! 🙂

  6. Fabiano Camara

    De fato é inspirador. Se queremos mudar a regra do jogo, precisamos jogar. Se quisermos caminhar, precisamos ir ao caminho. Mesmo “doendo” os passos precisam ser dados e ajustados. Lembro que Ruben Alves dizia que se não há uma pedra no sapato, não pensamos nunca em como melhorar nosso sapato. Um ótimo texto para hoje! abs

  7. Priscila Tescaro

    Que texto LINDO!!!!! Que história inspiradora…….. me encantou, me fez chorar e me emocionar que ainda existem pessoas que nos ajudam a ser pessoas melhores. Encontros marcados!

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