Bem posso dizer que sou um pouco arredia a médicos. Não “um pouco”, muito. Fico vendo todos nessa luta frenética por um horário marcado e uma fila no hospital e me benzo de alegria por fazer parte de um outro mundo, o mundo que não visita os médicos. Acontece que tem coisas que não curam pelo poder da mente – uma é meu dente que quebrou há quatro meses e agora precisa de um canal, outra é minha barriga que há uns três meses apresenta sintomas atípicos que mesmo eu, uma apurada observadora do meu corpo, não consegui compreender. Eu diagnosticaria como uma gravidez noturna, fato curioso e um tanto apavorante. Como não fez muito sentido meu diagnóstico, marquei, relutante, o médico.
Segunda às 18h30 lá estava eu na sala de espera com meu amigo que fez a indicação: “é o melhor de Manaus”…. isso que as pessoas dizem dos seus médicos quando indicam para os outros. Às 21h o senhor Luis apareceu no corredor chamando meu nome. Adoro esses senhorzinhos mais velhos, fui logo falando com ele “detesto médico e só vim porque não estou conseguindo resolver sozinha”. Ele ria das coisas que eu dizia e da minha terrível suspeita de que posso ter intolerância à lactose, logo eu, uma mineira! Inconcebível!! E ria quando eu dizia “só vim pra saber se é algo grave, algo bem grave mesmo, dessas doenças que matam”, ou de quando eu deitei e ele examinava minha barriga “quero mesmo viver sem comida, mas minha barriga está me apressando a fazer isso”, riu quando eu mostrei meu exame de sangue recém publicado toda orgulhosa como uma aluna que tira boas notas. “É, com um exame desses qualquer médico se sente um pouco inútil”. Foi ótima a consulta, me diverti. Ele empilhou umas 7 caixas de medicamento amostra grátis na mesa: “um antidepressivo para o intestino” – o que soou meio absurdo pra mim – e disse que não seria preciso agora fazer mais exames, que eu devo estar vivendo algum tipo de estresse e isso causa inchaço na barriga. Hum….
– Dr. Luis, Dr. Luis, eu sou uma moça que faz ioga, que medita, que caminha, que fica calma no trânsito, não estou estressada.
Ele me olhou com cara de “sério?!”.
– Dr. Luis, eu sou suuuuuper calma, super calma, zen total!
Me olhou levantando as sobrancelhas.
– Ah, Dr. Luis, mas se você soubesse de quanta coisa eu tenho que cuidar durante meus dias…. ficaria orgulhoso de como eu sou zen mesmo desbravando o mundo e suas mil atribuições.
Riu com aquele bigodinho dele esperando que eu concluísse o óbvio.
– Sabe, Dr. Luis, eu não estou muito bem mesmo nos últimos tempos. Vivi um monte de mudanças. Até fiquei achando que estava com uma doença grave. E fiquei mesmo sentindo que estava um pouco depressiva. Tudo bem, você tem razão. Vou observar meu nível de estresse.
– Cuide-se com esse medicamento, vai te deixar mais confortável com sua barriga, volte daqui a um mês.
Disse assim essa última frase como um médico diria mesmo para uma paciente qualquer. E eu vim embora pro mundo. E sei que o mundo não exige que façamos muitas autoanálises pra identificar se a barriga incha por causa estresse ou por causa do queijo. Com meu remédio mágico antidepressivo de intestinos estressados eu poderia até pular essa pergunta e seguir meus dias como manda o figurino.
Mas a quarta chegou. E meu dente, outra novela dessa vida mundana, me obrigou a marcar outra bendita consulta, agora com a dentista e não com o médico. Dra. Thaysa. Um consultório na torre de médicos do Millenium Shopping. Um tanto confortável parar no estacionamento do shopping, diga-se de passagem. E um tanto mais confortável quando eu consigo driblar os mil e um afazeres da minha quarta, sair duas horas mais cedo do trabalho, almoçar em tempo recorde para desempilhar pendências e organizar a agenda para estar ali 10 minutos antes das 16h, horário da minha consulta.
“Perfeito”, pensei. Ou “Ufa”, pensei.
Feliz por ter chegado 10 minutos antes fui procurar o elevador que dava acesso ao consultório. Eu, minha barriga inchada e meu dente quebrado. E nesse momento uma cena um tanto surreal se concebeu na minha frente: para pegar o elevador eu teria que percorrer uma fila de umas 60 pessoas que tiravam do bolso sua identidade, sorriam em frente a uma webcam para ter sua foto registrada e ganhavam um cartão para enfim entrarem no elevador. “O que é isso, santo deus?!”. Fiquei lá resignada sem acreditar no esquema maluco.
Em quinze minutos eu dividia o elevador com outras 7 ou 8 pessoas. Subimos e eu desci no 5º andar.
Bati na porta trancada de vidro do consultório.
– Olá! Eu sou a Paula que te ligou há uma hora confirmando a consulta com a Dra. Thaysa, vim fazer meu canal! – faço uma cara de simpática nesses momentos de quem entrega um sentimento amoroso.
– A doutora foi embora.
– O quê?
– A doutora foi embora porque você não chegou às 16h.
Revirei minha bolsa caçando meu celular. Achei.
– Mas são 16h10!! E está um inferno lá embaixo para entrar nos elevadores!
– É…. eu sei. Mas ela foi embora.
Não acreditei. Não podia acreditar. Me levantei da cadeira bem devagar, talvez me sentindo nocauteada.
– Tá certo – soltei a frase entre os dentes. Puta. Derrotada. Sei lá o quê.
Parei em frente ao elevador junto com umas outras 5 pessoas. E comecei a sentir meus olhos cheios de lágrima. Meu queixo com aquele tradicional tremor de choro. Meu corpo todo querendo chorar, chorar, chorar, chorar, chorar. Chorar tanto até que o mundo se acabasse ali mesmo, num choro compulsivo por tudo o que tem me cansado tanto, por tudo o que tenho que dar conta pra chegar em todos os lugares no horário certo, fazer as coisas do melhor jeito possível, pagar as contas em dia, entregar o que me pedem no prazo, a casa, o doutorado, o trabalho, a filha, as contas, a saúde, as leituras. Quis chorar meu cansaço e o descaso horroroso daquela dentista. Chorar de cair no chão se fosse possível. Mas não foi possível. Não foi porque o elevador chegou. E mesmo meus olhos tão vermelhos cheios de lágrima já foram suficiente para todos que estavam no elevador darem mais espaço pra eu entrar, para deixarem eu sair na frente quando ele parou, para na farmácia as atendentes me perguntarem o que eu queria e para a moça do guichê do estacionamento me perguntar “tudo bem com a senhora?”. Um choro compulsivo como o que eu adoraria ter chorado seria demais pra todas aquelas pessoas, um desestabilizar de fim de dia.
Voltei pra casa pensando, durante metade do caminho, que o Dr. Luis bem tinha razão, alguém que quer chorar tão compulsivamente assim só pode estar mesmo em estado de estresse. E repeti pra mim o discurso de que tem horas que precisamos parar um pouco pra respirar mais fundo e encarar que os fardos, por mais que pareçam leves e possíveis de serem carregados por longas distâncias, ainda assim podem ficar ainda mais leves ou deixados no canto da estrada por um tempo para um breve descanso.
Voltei pra casa pensando, durante a outra metade do caminho, que o Dr. Luis abriu uma boa janela para eu olhar pra mim mesma enxergando mais fragilidade, mais cansaço, mais coisas a fazer que tempo livre, mais estresse. E não quero me enxergar assim.
Só de ficar tentando descobrir se tenho mesmo estresse ou se é uma autoindução por causa das conclusões do Dr. Luis minha barriga já inchou três vezes mais mandando eu parar de fazer perguntas e manter a mente em silêncio, calada, muda, quieta.
Eita! Acalma essa barriga menina!
hahahah respira…… respira….
É como eu falei um dia desses: o mundo hoje em dia funciona à base de cafeína! Essa substância aparentemente milagrosa nos torna mais ativos de um modo geral (até o intestino fica mais ativo, como, infelizmente, ja constatei) e é quase uma necessidade tomar café, capsulas de guaraná ou qualquer coisa que tenha disso pra lidar com toda essa pressão. Prazos em cima de prazos nesse mundo louco que nunca dorme!
Mas o nosso corpo, a nossa alma, se recusa a aceitar isso. Primeiro é o nosso cérebro, que toma tolerância à cafeína de tal forma que beber um copo de café se torna uma necessidade pra funcionar normalmente e não mais uma forma de ficar mais alerta. Depois é o nosso corpo que começa a reagir:
Dores nas costas, dores de cabeça, constipação!
Quase como uma forma da natureza dizer: “ja chega! Você vai parar. Quanto mais insistir nessa loucura, maiores serão as consequências.”
Então nos sentimos como pequenas crianças que precisam de alguém que nos cuide e que nos salve!
Ninguém é invulnerável e corpo nenhum suporta pressão pra sempre. Precisamos de ócio!
Por uma vida de mais ócio criativo! Salve!