DA MÁQUINA QUE SE APAIXONOU PELA PAISAGEM

Essa é a estória de uma máquina fotográfica que se apaixonou por uma paisagem. Não foi porque caducou de velhice ou porque uma loucura súbita acometeu sua alma. Não sofria do mal da velhice e suas engrenagens digitais estavam bem em dia. Também não se pode dizer que a máquina caiu em paixão porque a paisagem era tão diferente assim de todas as outras paisagens que conhecia. Não era. Era uma paisagem muito linda, mas vagando pelo mundo com suas lentes a máquina esteve diante de lugares de igual beleza. Estava apaixonada, era o fato.

E a verdade é que para uma máquina fotográfica é um tremendo desafortuno apaixonar-se logo por uma paisagem. Melhor seria entrar em estado de graça por sua dona, ela que é sempre linda e cheirosa, está sempre por perto e a carregando pelos lugares. Ou quem sabe apaixonar-se por uma outra máquina fotográfica bem novinha que está à venda na loja de eletrônicos que fica bem na esquina. Mas por uma paisagem…!? Apaixonar-se por uma paisagem pode ser, definitivamente, uma das maiores tragédias na vida de uma máquina, porque máquina foi feita pra ver o mundo todo com olhos encantados e não entrar em encantamento por um só lugar. Máquina foi feita pra ver os detalhes que há em tudo e trazê-los cheios de beleza para a vida através do clique, eternizando que há ao redor para o sempre. E máquina apaixonada por paisagem só quer saber de eternizar seu ser amado e tudo mais se ofusca, tudo mais se cala.

Pois lá estava ela sem saber o que fazer, sem conseguir ajustar bem os brilhos e os focos e os desfocos quando não diante de sua musa inspiradora. Os tons de sépia e o P&B até caiam bem vez ou outra em sua jornada de mortal, mas quem disse que os ajustes de cor funcionavam direito? E quem disse que o brilho e os tons vivos das fotos eram os mesmos de antes? Sem saber quando estaria de novo frente a frente com sua paisagem, a máquina perdeu contraste, brilho, tom, fash. Entristeceu-se e viraria item de descarte se não fosse o fato de sua dona estar tão assoberbada de trabalho que se quer conseguia planejar a compra de uma nova máquina.

Jogada entre os livros da estante, a máquina olhava o quarto e o mundo desolada, sem esperança, incomodada, cheia de saudade. E então numa tarde de sexta foi inevitável perceber que a movimentação no quarto não era a mesma.

“O que ela faz aqui a essa hora da tarde?”. Olhou a dona ir e vir recolhendo as coisas, remexendo as gavetas, pegando uma sacola ou outra, reunindo as calcinhas limpas em cima da cama e, como num estalo de luzes, viu que ela ia em direção às botas de trilha. E num outro estalo de luzes, viu que ela começou a colocar tudo dentro de sua mochila de montanhista. E o coração da máquina acelerou tanto que era quase possível ouvi-lo a distância. Aquelas botas e aquela mochila percorreram o caminho que a fez apaixonar-se, o caminho para a paisagem que enchia suas lentes de amor e ternura.

Sua dona foi aproximando-se da estante a sua procura e revirando os papéis que hoje formavam pilhas sobre a máquina. Remexia e revirava as bagunças e finalmente estavam frente a frente, e agora podia de novo sentir as mãos macias de sua dona.

– Aí está você! Preparada? Hoje vamos para a Montanha!
Desfaleceu.

 

5 Comments

  1. Magno

    Meu Deus, que coisa mais linda….
    Fui lendo, e ficando extasiado.
    Viví o desalento da pobre máquina, absorvi a sua tristeza,
    mas não me contive num sorriso aberto e franco quando ela se viu diante da nova oportunidade de ir ver a sua paisagem tão querida.
    Que lindo texto, que linda história, que lindo saber que, seja num ponto ou numa vírgula, faço parte dessa historinha.
    Que felicidade!
    Parabéns, minha escritora preferida!
    Magno

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